O inconsciente do olhar IV
Leia este texto ouvindo,
Can’t
help falling in love, na voz de Elvis.
Antropologicamente
acredito que o brasileiro é povo mais dissolvente do mundo no que se refere à
manifestação de seus afetos em público. Para conferir essa tese basta você ir a
algum terminal rodoviário, aeroporto ou cais onde algum brasileiro irá embarcar
ou desembarcar. O nível de entrega e de demonstração de afeto para quem vai ou
está chegando é obscenamente descarado. Há mais de quinhentos anos o Senhor P.
V. de Caminha sentenciara, em trecho, ao Rei de Portugal: “eles não tem pudor em mostrar suas vergonhas”. Hoje Senhor Caminha
lhe completo: nem pudor de mostrar e demostrar vergonhas e sentimentos
publicamente.
A
título de exemplo, vou narrar uma história que presenciei em um dos locais mais
corriqueiros de minha cidade, a Estação Central de metrô do Recife, local de
alto fluxo de pessoas diariamente. Uma cena que passou despercebida por muita
gente, não por mim que gosta do banal e do prosaico pois, as coisas “rasteiras”
me celestam.
***
Era
um fim de tarde de julho no Recife e a brisa marítima misturada ao cheiro de
chuva recém caída mais as emanações ocre do mangue, tão típicas na cidade,
vinham tepidamente ao meu encontro quando fui impelido fora do vagão com seu
ar-condicionado compartilhado pela multidão apressada a ganhar à plataforma de
desembarque.
Vinha
descendo à leve inclinação da plataforma prestando atenção na multidão que ora
vinha ao meu encontro ávida para pegar um lugar nos assentos do vagão que
acabara de sair, ora passando por mim voando baixo para pegar lugares nos
ônibus do terminal integrado contíguo à Estação Central – todos nós corremos
para pegar os melhores lugares, seja na janela do coletivo, na folha de
pagamento da empresa, no coração da pessoa amada, mas no final, nossa última
viagem será deitada e lenta.
Deambulava
nestes pensamentos quando vi um casal debaixo de um feixe de luz que vinha da
claraboia da Estação, cujo telhado de matéria plástica coadunava-se com a
leitosa luz do lusco-fusco deitando àquela hora sob o saguão.
Ele
mais alto do que ela, de camiseta regata, bermuda e sandálias de dedo.
Ela
de calça jeans, camisa escura, salto alto e segurando uma mala de viagem,
daquelas que puxamos às alças e deslizamos suas rodinhas pelos quatro cantos do
mundo.
Ele
moreno como toda a gente desse país que se não leva a melanina na pele, leva-a
na alma.
Ela
baixinha e gordinha com o pescoço inclinado para cima beijava o seu amado de uma
forma lenta e cerimoniosa. Agradecendo da forma mais terna possível em público.
Ele
acompanhava a despedida dela e seu beijo, se traduzido, diria: “Pode ir que
estarei aqui lhe esperando, meu amor. Encontraras-me do jeito que deixastes. O
tanque de combustível da saudade secará no teu regresso enquanto o do amor
queimará ainda por um bom tempo enquanto estivermos por essa estrada que
construímos e palmilhamos juntos”.
Ela,
seu pudéssemos traduzir os seus beijos road
movie, diria: “Eu voltarei para nossa casa às margens da estrada, meu amor.
Sei que voltarei porque seu afeto ‘são as rodinhas dessa mala’ e com ele todo o
fardo sem alça da vida e, seu peso serão aliviados pelo seu engenhoso expediente
tão avesso aos ‘atritos’ da estrada e da saudade”.
Ambos
contrastavam com o torvelinho que lhes circundavam em uma indiferença mútua – a
Cidade escorraça o Amor e vice-versa. Mas, naquele instante, a Cidade deu uma
trégua ao Amor que frevou na cara da multidão mostrando e demonstrando
publicamente suas vergonhas.
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