O inconsciente do olhar IV

7.8.14 Cabotino 0 Comentarios


Leia este texto ouvindo,
 Can’t help falling in love, na voz de Elvis.

Antropologicamente acredito que o brasileiro é povo mais dissolvente do mundo no que se refere à manifestação de seus afetos em público. Para conferir essa tese basta você ir a algum terminal rodoviário, aeroporto ou cais onde algum brasileiro irá embarcar ou desembarcar. O nível de entrega e de demonstração de afeto para quem vai ou está chegando é obscenamente descarado. Há mais de quinhentos anos o Senhor P. V. de Caminha sentenciara, em trecho, ao Rei de Portugal: “eles não tem pudor em mostrar suas vergonhas”. Hoje Senhor Caminha lhe completo: nem pudor de mostrar e demostrar vergonhas e sentimentos publicamente.

A título de exemplo, vou narrar uma história que presenciei em um dos locais mais corriqueiros de minha cidade, a Estação Central de metrô do Recife, local de alto fluxo de pessoas diariamente. Uma cena que passou despercebida por muita gente, não por mim que gosta do banal e do prosaico pois, as coisas “rasteiras” me celestam.
***
Era um fim de tarde de julho no Recife e a brisa marítima misturada ao cheiro de chuva recém caída mais as emanações ocre do mangue, tão típicas na cidade, vinham tepidamente ao meu encontro quando fui impelido fora do vagão com seu ar-condicionado compartilhado pela multidão apressada a ganhar à plataforma de desembarque.

Vinha descendo à leve inclinação da plataforma prestando atenção na multidão que ora vinha ao meu encontro ávida para pegar um lugar nos assentos do vagão que acabara de sair, ora passando por mim voando baixo para pegar lugares nos ônibus do terminal integrado contíguo à Estação Central – todos nós corremos para pegar os melhores lugares, seja na janela do coletivo, na folha de pagamento da empresa, no coração da pessoa amada, mas no final, nossa última viagem será deitada e lenta.

Deambulava nestes pensamentos quando vi um casal debaixo de um feixe de luz que vinha da claraboia da Estação, cujo telhado de matéria plástica coadunava-se com a leitosa luz do lusco-fusco deitando àquela hora sob o saguão.

Ele mais alto do que ela, de camiseta regata, bermuda e sandálias de dedo.

Ela de calça jeans, camisa escura, salto alto e segurando uma mala de viagem, daquelas que puxamos às alças e deslizamos suas rodinhas pelos quatro cantos do mundo.

Ele moreno como toda a gente desse país que se não leva a melanina na pele, leva-a na alma.

Ela baixinha e gordinha com o pescoço inclinado para cima beijava o seu amado de uma forma lenta e cerimoniosa. Agradecendo da forma mais terna possível em público.

Ele acompanhava a despedida dela e seu beijo, se traduzido, diria: “Pode ir que estarei aqui lhe esperando, meu amor. Encontraras-me do jeito que deixastes. O tanque de combustível da saudade secará no teu regresso enquanto o do amor queimará ainda por um bom tempo enquanto estivermos por essa estrada que construímos e palmilhamos juntos”.

Ela, seu pudéssemos traduzir os seus beijos road movie, diria: “Eu voltarei para nossa casa às margens da estrada, meu amor. Sei que voltarei porque seu afeto ‘são as rodinhas dessa mala’ e com ele todo o fardo sem alça da vida e, seu peso serão aliviados pelo seu engenhoso expediente tão avesso aos ‘atritos’ da estrada e da saudade”.

Ambos contrastavam com o torvelinho que lhes circundavam em uma indiferença mútua – a Cidade escorraça o Amor e vice-versa. Mas, naquele instante, a Cidade deu uma trégua ao Amor que frevou na cara da multidão mostrando e demonstrando publicamente suas vergonhas.




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