Águas de junho
Os
melhores dias do ano vêm com as chuvas, porém os mais tristes também.
Há
um quê de insulamento nos dias de chuva, principalmente, para quem vive nesta
cidade anfíbia, Recife.
A
água que escorre obliquamente do céu e cai por terra ora com calma, ora intempestivamente,
e nos fazem abrir guarda-chuvas; procurar uma marquise ou correr sob ela, por
isso, sempre achei a chuva um elemento pecaminoso que devemos, às vezes, nos
proteger para poder seguir em frente depois.
A
chuva é como alguma coisa que despenca dos píncaros da virtude [céu/cultura] e
tomba, invariavelmente, pelas frestas do chão [terra/corpo] e gera um
sentimento de alheamento, como alguém que acaba de ter um orgasmo.
A
água é o elemento mais presente dentro e fora de nós e as chuvas são a prova de
que algo nosso bate lá fora e está indo embora. É a vida que escorre e não
voltará, mesmo com outro junho ou canalizando-a em cisternas, pois água parada
é água morta.
Com
as chuvas somos imersos em uma triste e divertida solidão – as águas caem lá
fora e cá dentro puxamos os lençóis da existência, nos encolhemos fetalmente
para aquecermo-nos em meio ao líquido amniótico dos que nos fazem ter forças
para sairmos da cama no dia seguinte, enquanto o vento frio e hostil externo
nos impele a ficarmos na cama.
Quando
chove, somos mergulhados em uma prostração que não condiz com a nossa condição
de seres criados no mundo moderno, ou seja, seres voltados para o movimento das
mercadorias, em uma palavra, para o trabalho assalariado onde nossos corpos são
a principal mercadoria destituída de sua total potencialidade, alienados porque
o seu trabalho não lhe pertence. Acredito que nossos ancestrais tinham o peito
menos opresso quando viam a chuva, acho que até trabalhavam sob ela, faziam
seus ritos e até transavam.
Hoje,
nosso humor é embotado diante da chuva porque fomos privados dela. Não tem como
ficar sério quando se toma um banho de chuva com gosto, tal qual quando erámos
criança. Ficamos tristes porque gostaríamos de estar lá fora correndo não da, mas com a chuva.
Entretanto,
a água é ambivalente, pois se ficarmos macambúzios com ela que cai lá fora,
bate algo aqui dentro que nos força a criar alguma coisa. Já reparam quantas
vezes não fomos surpreendidos com boas ideias no chuveiro e até cantamos de felicidade,
pois a chuva também tem esse potencial só que com uma diferença: a chuva nos
molha por dentro e, como tal, revolve alguma coisa internamente que é irmanada
com aquilo que vai lá fora em busca do mar, da imensidão, do vazio, da morte.
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