Águas de junho

30.6.14 Cabotino 0 Comentarios



Os melhores dias do ano vêm com as chuvas, porém os mais tristes também.

Há um quê de insulamento nos dias de chuva, principalmente, para quem vive nesta cidade anfíbia, Recife.

A água que escorre obliquamente do céu e cai por terra ora com calma, ora intempestivamente, e nos fazem abrir guarda-chuvas; procurar uma marquise ou correr sob ela, por isso, sempre achei a chuva um elemento pecaminoso que devemos, às vezes, nos proteger para poder seguir em frente depois.

A chuva é como alguma coisa que despenca dos píncaros da virtude [céu/cultura] e tomba, invariavelmente, pelas frestas do chão [terra/corpo] e gera um sentimento de alheamento, como alguém que acaba de ter um orgasmo.

A água é o elemento mais presente dentro e fora de nós e as chuvas são a prova de que algo nosso bate lá fora e está indo embora. É a vida que escorre e não voltará, mesmo com outro junho ou canalizando-a em cisternas, pois água parada é água morta.

Com as chuvas somos imersos em uma triste e divertida solidão – as águas caem lá fora e cá dentro puxamos os lençóis da existência, nos encolhemos fetalmente para aquecermo-nos em meio ao líquido amniótico dos que nos fazem ter forças para sairmos da cama no dia seguinte, enquanto o vento frio e hostil externo nos impele a ficarmos na cama.

Quando chove, somos mergulhados em uma prostração que não condiz com a nossa condição de seres criados no mundo moderno, ou seja, seres voltados para o movimento das mercadorias, em uma palavra, para o trabalho assalariado onde nossos corpos são a principal mercadoria destituída de sua total potencialidade, alienados porque o seu trabalho não lhe pertence. Acredito que nossos ancestrais tinham o peito menos opresso quando viam a chuva, acho que até trabalhavam sob ela, faziam seus ritos e até transavam.

Hoje, nosso humor é embotado diante da chuva porque fomos privados dela. Não tem como ficar sério quando se toma um banho de chuva com gosto, tal qual quando erámos criança. Ficamos tristes porque gostaríamos de estar lá fora correndo não da, mas com a chuva.

Entretanto, a água é ambivalente, pois se ficarmos macambúzios com ela que cai lá fora, bate algo aqui dentro que nos força a criar alguma coisa. Já reparam quantas vezes não fomos surpreendidos com boas ideias no chuveiro e até cantamos de felicidade, pois a chuva também tem esse potencial só que com uma diferença: a chuva nos molha por dentro e, como tal, revolve alguma coisa internamente que é irmanada com aquilo que vai lá fora em busca do mar, da imensidão, do vazio, da morte.


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