Sétimo Monólogo: (é tudo invenção, nada é real!)
Lúcio:
Cinquenta e dois anos. Alcoólatra. Mendigo.
Desgraçado. Acostumado à desgraça.
Sentado no banco da praça, a vida
passava monótona para Lúcio. Todo dia era igual. Não importavam os eventos inusitados. Lúcio havia intencionalmente se condenado a mesmice, tinha uma consciência
clara disso: “Sou assim porque quis ser...” pensava “não choramingo”. Vez por
outra Lúcio se lembrava do passo a passo que o levara àquela liberdade absoluta
e miserável “Se eu não tivesse mudado tudo seria diferente e assim eu ainda
estaria casado com Marilene... Eu não suportava Marilene... E ainda estaria
trabalhando... Trabalhar era tão ruim quanto estar casado com aquela praga... Agora
não há dinheiro, mas não há patrões nem contas nem Marilene; vinte e três anos
casado com ela, que terror”. Sua barriga roncou e ele lembrou amargurado que
graças a sua liberdade absoluta ele não tinha recursos para ir à barraca de
Angélica tomar uma sopa; suspirou um suspiro triste, mas não desistente. De
longe, Lúcio viu Valdir, dono da barraca, entregar alguma coisa pra Carvão, um mendigo das redondezas: “Valdir
é pirangueiro que só a porra! Que será que ele ta dando pra Carvão?”. Lúcio deitou no banco da praça
e olhou por baixo a copa das árvores. Apreciou a visão “O mundo mesmo não é de
um jeito só. Tem uma palavra para isso... Uma palavra que eu não lembro agora,
uma palavra que aquele cara me falou, o professor... Deixa pra lá, depois eu
lembro.” Por um instante Lúcio não pode pensar, por causa de um carro de
propaganda que passou fazendo um barulho entorpecedor, e em seguida passou
outro e quando Lúcio pensou que aquela algazarra se ia acabar, então passou
outro, um terceiro. Percebendo que o barulho das propagandas se despedia, Lúcio pensou xingando e continuou “Porra! Barulho da porra! Nem dá pra lembrar da
palavra desse jeito... Palavra difícil da porra!”. Deu uma pausa, mudou sua
posição, sentando-se. Acendeu um cigarro barato retirado do bolso de sua
camisa; era o último. Amassou a embalagem vazia de cigarros e jogou num canto do
chão da praça. A embalagem quase bateu nos pés de um casal de jovens que ia
passando, um jovem casal com cara de universitários. A moça mirou Lúcio com um
olhar de repugnância que dizia: “Porco!”. Lúcio sentiu a mensagem, mas não deu
importância, naturalizara a imundice. Deitou novamente de costas para o banco e
começou a fumar. A fumaça de suas baforadas ia se desmanchando no ar enquanto
afastava-se do rosto fedorento, remelento e mal barbeado de nosso personagem.
Retomou “O mundo mesmo tem tanto jeito de ser visto pela gente que parece até
que não tem jeito nenhum. Essa árvore aqui eu vejo de baixo eu vejo do lado e
se pudesse eu via de cima. A árvore mesmo é qual? A de baixo a do lado ou a de
cima? Ela é as três, mas as três eu não vejo de uma vez só! Então eu vejo a
árvore assim e assado, mas não vejo tudo ao mesmo tempo. Que merda! Quem vê os
pedaços da coisa, mas nunca vê a coisa toda não vê porra nenhuma!”. Viu uma
evangélica gostosa passando do outro lado da rua: os quadris largos rebolando dentro da saia que ia até abaixo dos joelhos; sorrio canalha e já excitado; tornou “O mundo todo é desse jeito, a gente vê as partes de todas as
coisas, mas nunca pode ver a coisa por completo. Tem coisa que a gente pega,
feito uma bola, usa e mesmo assim não consegue ver ela toda ao mesmo tempo. Tem
coisa que a gente não pega, mas que mexe com a gente e tanto faz quanto tempo
passou, a gente não consegue enxergar essa coisa por inteiro nunca... Não entende... O sentimento
que me fez suportar vinte e três anos com Marilene é uma coisa dessas”. Lúcio
viu Carvão aproximando-se esmoleu com
a mão estendida, e viu também que lá longe a evangélica gostosa parou para
conversar com uma pessoa e sem esperar sentiu uma palavra estalar em sua cabeça
“Perspectiva! A palavra que o professor disse foi: Perspectiva!”.
Castanha 13
de junho de 2014
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