Sexto Monólogo: (é tudo invenção, nada é real!)
Valdir:
Quarenta e poucos anos. Tão rabugento e
conservador quanto um sujeito de cento e tantos anos. Não suporta vadiagem.
Odeia a vadiagem de Rui (e de tantos outros da vizinhança). Apesar de tudo, tem
um bom coração.
Quando Rui deu as costas para a barraca de Valdir este resmungou, um
resmungo tão baixo e rebuscado que só ele, envolvido pelos pensamentos que
alimentavam aquelas palavras, conseguia compreender: “Esse, menino, é um vadio...
Sujeito assim não tem utilidade nem pra enxugar gelo... Não percebe que a gente
tem que se mexer? Que todo mundo tem que dar utilidade pra vida? Esse cara
parece um bicho preguiça!”. Organizou outros maços de cigarro na prateleira,
colocou mais confeitos em um dos potes de doces, organizou os biscoitos ao lado
dos salgados e ao final, como não aguentava ficar parado, foi limpar pela sexta
ou sétima vez naquele dia, o balcão que passava os dias sob as caixas de bolos
salgados. “Estou aqui com meus quarenta e tantos anos e não tenha essa
preguiça rabugenta desses meninos!” disse isso a si mesmo ao ver passar do
outro lado da rua uns adolescentes com caras de asno e que arrastavam os pés
feito tartarugas; “Estou aqui firme e forte, trabalhando feito um touro... Um
touro sem os chifres, que chifre é coisa de corno, e eu sei que Nalvinha não ia
fazer isso comigo. Sou disposto feito um touro, acho que sou assim por que não
sou dessas modas que mudam a toda hora que fazem esses meninos ficarem assim:
molengas, preguiçosos, abestalhados, veados! Nem ia me casar com uma mulher que
tivesse o jeito dessas meninas de hoje: Tudo mostrando as pernas, sem vergonha
na cara, tudo se oferecendo, que baixaria!”. Carvão, um mendigo negro que vivia por ali com a ajuda dos outros e
dormindo nas calçadas do bairro, cruzara a dobra da esquina e era avistado de
longe por Valdir: “Lá vem o vagabundo!” e pensando isso Valdir irritou-se “como
é que o cara vive desse jeito, é pior que Rui! Esse cara deve ter o quê? Trinta
anos? Trinta e poucos? Sem estudar, sem trabalhar, sem pagar contas... Seboso!”
Valdir virou o rosto, os passos lentos de Carvão
irritavam-no. Acenou para D. Severina que ia passando lá longe. D. Severina era
bem idosa e tinha cuidado de Valdir durante uma parte de sua infância. Sem
perceber Valdir foi mergulhando em algumas memórias e se lembrou de uma vez que
D. Severina lhe falou ‘Escute, Valdir, tem gente que nasce com a bunda virada
pra lua e tem tanta sorte que pode de tudo fazer, parece até um pássaro que vai
voando sem limites; já têm outros que parece que nascem pra passar aperto... Que
nascem mesmo é com o cu virado para o formigueiro!’. Revirou outras memórias:
encontrou trelas, alegrias e monotonias da infância. A consulta aos causos da
infância de Valdir foi quebrada pela chegada de Carvão: mão estendida, boca desdentada e o pouco juízo que a vida
de pobreza não lhe arrancou. Valdir olhou aquela figura: tão miserável quanto desmiolado
e infantil; pegou umas moedas e lhe entregou. Carvão sorriu tão feliz que sua alegria causou graça em Valdir, e este
achou bonita a satisfação do outro.
Castanha 20 de maio
de 2014
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