Sobre futebol, etc

20.6.14 Foi Hoje! 0 Comentarios


Como saciar a sede por futebol e, ao mesmo tempo, manter uma coerência ética e ideológica em tempos de efervescência política? Talvez essa seja a querela interna que muitos brasileiros tentam resolver, de si para si, nos últimos dias. Claro que há, para um extremo e para o outro, quem  não se encaixa neste dilema - os aficionados e os apáticos. Mas o grosso médio dos brasileiros que acompanha futebol sente sua paixão ser instrumentalizada econômica e politicamente mas, em contrapartida, não consegue se desvencilhar da televisão, nem que seja para torcer contra, fazer as vezes de "secador(a)". Essa sensação novíssima, no entanto, está calcada numa velha dicotomia que ora sustenta o poder progressista e libertador do futebol e ora apregoa que ele é matéria alienante e escamoteadora da realidade. E eis que é esse debate que o Cabotino, literariamente, nos apresenta:


Panem et Circenses [Tese]


Sempre tiro férias no mês de fevereiro por conta do Carnaval já que não suporto a catarse coletiva da festa de momo. Porém, troco o mês de fevereiro por junho quando o ano é de Copa do Mundo e vou para a minha casa na serra porque acho que o evento da FIFA deixa os brasileiros mais histéricos do que o Carnaval. Por conta disso, subo a serra e vou ler romances, tomar banho de rio, ouvir música barroca e dormir na santa paz do silêncio.

Acredito que o futebol seja o ópio do povo mais até do que o Carnaval, pois este dura apenas quatro dias, enquanto aquele, um mês, e como tal suga às forças da plebe em prol de um desperdício de economia antropológica sem igual.

No caso brasileiro, a Copa do Mundo de 2014 foi anunciada na Suíça em 2007, de lá para cá, passaram-se sete anos em que o governo, os estados [a FIFA queria oito cidades sedes, o governo conseguiu impor doze, inclusive em cidades que não tem uma tradição futebolística, como são os casos de Cuiabá, Brasília e Manaus, ou seja, estes estádios serão futuros “elefantes brancos”] e os munícipios advogavam que todas as obras ficariam prontas a contento. Sabíamos que seria impossível, mas fingimos que ficariam, como sempre fazemos, é velha prática da indolência tupiniquim que acredita que as coisas ficarão prontas por si só porque afinal de contas “Deus é brasileiro”.

E por ironia, calhou da Copa do Mundo ser realizada um ano após a assim chamada: “jornadas de junho”. Sei que as condições são bem mais auspiciosas, mas vale o exemplo com a Copa do Mundo de 1970 no México, ocasião em que, aqui no Brasil vivíamos os anos de chumbo do governo Médici e a população [leia-se classe média] vivia garroteada pela censura e com seus direitos políticos e eleitorais cerceados. Este ano, a Copa está tendo os mesmos efeitos alienadores que tivera em 1970, pois após um ano em que “o gigante acordou” ele calçou chuteiras e foi aos estádios, ou ficou em casa vendo os jogos em sua nova tevê smart de led, a alienação em alta definição. O que acalentou um pouco a população em seu panis et circense [pão e circo] em 1970, foi que a seleção brasileira fora tricampeã jogando um belíssimo futebol, o que não está no horizonte da atual seleção que busca o hexa.

Daqui de cima, vejo o efeito narcotizante do futebol nas consciências medianas da massa brasileira que fora entorpecida pela bola que está rolando nas arenas, que ao invés de areia, estão forradas de uma grama verde [gerando até um certo grua de “daltonismo” nas massas] e cercada de propaganda por toda a parte, mas não devemos nos esquecer, que a população romana também queria seu pão e seu circo com os gladiadores enfrentando feras ou lutando mutuamente para alimentar a fome das arquibancadas por espetáculos. Na Copa, saem de cena a areia, as feras, os gladiadores e entram a bola, a publicidade e as 37 câmeras que captam tudo, inclusive, a apatia de uma plateia que de tão estimulada por todo o aparato alienador dos meios de comunicação que há sete anos bombardeando todos com o legado milagroso que a Copa deixará para as cidades em que passara.

Neste sentido, o “gigante que acordou” no ano passado está tal qual Polifemo [ciclope da Odisseia de Homero] que teve seu único olho furado por Odisseu que se aproveitou de sua bebedeira de vinho para cegá-lo e que em seguida, ficou arremessando pedras de sua ilha para as naus de Odisseu que ganhou mar e fugiu de seus domínios. O vinho de nosso “gigante” é a Copa do Mundo e o Odisseu que o cegou é o futebol.


Vamos falar do pão e do circo [Antítese]

Ano de Copa do Mundo tiro férias no mês de junho porque gosto de ver os jogos, este ano inclusive comprei uma super TV de 42 polegadas! Para ver as partidas, gosto de futebol e ponto e pronto!

Algumas pessoas “esclarecidas” – desconfio que os esclarecidos são os que produzem as maiores desgraças do mundo – afirmam que: “o futebol é o ópio do povo”. Daí eu respondo: “ainda bem, pior seria se fosse o crack”.

Muitos põem uma relação de causa e efeito quando se trata de futebol e política, afirmando que o futebol entorpece o poder contestatório das massas etc., ora, eu faço-vos uma pergunta: “Foi Pelé que destituiu Jango em 1964?”. Outra coisa, Mussolini com sua esquadra Azzurra fora duas vezes campeão mundial, 1934 e 1938, e nem por isso escapou de ser morto e exporto em via pública pela população italiana. 

Outra coisa que merece destaque na tese entre futebol e política é que ela, em larga medida, é associada apenas ao caso brasileiro, pouca gente questiona a alienação dos ingleses, alemãs ou italianos com o futebol, por que será?

Outra dimensão que não podemos esquecer é que o futebol fora a via de várias manifestações emancipatórias na política brasileira, basta ver os times do Vasco da Gama e Bangu no Rio de Janeiro da década de 1920. Estes times incentivaram a profissionalização dos atletas, antes amadores, pagando salários no final do mês e, o mais radical, aceitaram negros em seus times porque um era clube de fábrica, o Bangu, e o outro, de imigrantes, o Vasco, algo que desafiou a elite branca (desculpem o pleonasmo) do futebol carioca e brasileiro. No final da década de 1970 surgira à democracia Corinthiana, movimento que clamava, a partir de uma forte política endógena em que o massagista tinha o mesmo poder de veto do presidente, uma forte participação democrática dentro e fora de suas dependências. Recentemente, o movimento intitulado “Bom senso” que é arregimentado pela própria categoria dos jogadores de futebol no Brasil, questiona a arbitrariedade do calendário futebolístico brasileiro realizada pela CBF e pela Globo que detém “naturalmente” os direitos de exibição do futebol no Brasil, pois esta mantém uma relação escusa de compadrinhamento com aquela.

Tenho a forte impressão que a hipótese do futebol como alienação das massas – o próprio termo é carregado da ideologia paternalista –, no Brasil, fora disseminada pela elite que vê o futebol como uma paixão indomável e ressignificada, haja vista, que o futebol enquanto prática esportiva da elite britânica no século XIX chegara ao Brasil no início do XX de maneira formal – o mito fundador de C. Muller, membro da elite paulista, chegando ao porto de Santos com duas bolas entre os braços e o livro de regras na bagagem – e que deixou de ser monopólio das elites e, paulatinamente, foi ganhando a adesão em sua prática pelo grosso da população brasileira. Um processo semi-análogo podemos ver no carnaval e no samba. A elite brasileira tem ojeriza a tudo aquilo que o povo escolhe para se manifestar e imprimir a sua criatividade, pois ela é destituída de gênio e paixão.




E você, caro(a) leitor(a), como resolve esse embate interno? Toma sua cerveja e masca seu amendoim sem um grama de peso na consciência? Ou, numa postura sincera, se recusa acompanhar o evento e só assiste aos jogos do Brasil porque inevitável, e, ainda assim, para "secar"? Exponha aqui sua opinião e nos ajude a por termo, mesmo que momentâneo, a essa contenda secular do mundo da bola.

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* Fotografia de Thomas Farkas que retrata crianças assistindo a uma partida de futebol do lado de fora do estádio do Pacaembu, São Paulo, em 1941.

** Foto tirada por Ricardo Azoury no Maracanã por ocasião do primeiro título brasileiro do Flamengo contra o Atlético Mineiro em 1980 (3x2). Na foto, vemos a vibração da torcida do Flamengo.

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