Carlinhos, parte dois

27.5.14 Unknown 2 Comentarios



Em outro momento, aqui mesmo no FoiHoje, escrevi sobre Carlos, conhecido como Carlinhos das Mulheres em Tejipió e redondezas. É importante lembrar, antes de tudo, que Carlinhos é uma pessoa em sofrimento psíquico, tem uma idade mental em descompasso com a idade cronológica, e que às vezes é acometido por uma profunda depressão, mas se for bem amado e cuidado consegue viver linear e tranquilamente, distribuindo sorrisos por onde passa.

Naquela ocasião relatei a tristeza que foi ver a mente frágil de Carlinhos ser abocanhada pela ideologia neopentecostal. Ela havia corroído o que tinha de mais alegre e espontâneo em sua figura. Lamentei isso, talvez em tom exagerado. Foi o espanto. Relevem.

Há quase um mês atrás minha mãe reencontrou Carlinhos. E nem fez esforço para isso: ele estava parado à frente de nossa casa. Estava sentando, com os cotovelos apoiado nos joelhos e as mãos segurando a cabeça. Chorava contidamente. Ao vê-lo, minha mãe acudiu, levantou-o e perguntou o que lhe havia acontecido. Ele soltou as rédeas do choro e falou sem cerimônia:

 As pessoas da minha casa não cuidam de mim, me deixam jogado na rua. E me deixam com fome, tô com fome, não tomei banho, tô a uma hora dessas na rua... Nem o dinheiro da minha aposentadoria eu vejo, quando sai, eles pegam e pronto. Tem sido assim desde que minha mãe morreu.

Minha mãe ouviu ele falar pacientemente. Quando desabafou, o choro esmoreceu, e um dedo de calmaria chegou, ela perguntou se ele não queria entrar para jantar e listou: tem pão novo, café quente, cuscuz, ovo frito, charque assada, suco de acerola.

  Você quer, Carlinhos?
 Quero papa. Minha mãe fazia papa para mim. Você faz papa?

Entraram todos, Carlinhos se acomodou na mesa. Minha fez uma papa de aveia, sem economia nem parcimônia. Encheu o prato, esperou exíguos cinco minutos e a serviu a Carlinhos, que desabrochou em felicidade. Até a primeira metade, não falou nada, concentrado. Daí em diante, já falava continuamente, intercalando um riso e um comentário. A certa altura, advertiu:

 Bem, você cozinhou uma papa. Uma papa média. Não é tão boa, a que a minha mãe fazia era melhor.

Rimos todos, suaves, a naturalidade de Carlinhos estava de volta. Comeu e proseou ainda por mais dez minutos, sem pressa. Ao cabo, levantou, andou até perto de minha mãe, e apesar de ter censurado a qualidade há poucos instantes, agradeceu:

 Muito obrigado pela comida e por me ajudar, na sua casa. Fez o seu já conhecido gesto e finalzou. — Você agora está protegida e abençoada, é uma mulher de Carlinhos.

Carlinhos se despediu e partiu. Fiquei pensando nele, abatido pela angústia de não poder ajudá-lo mais, e lembrando das "peladas" que batia no Hospital Ulysses Pernambucano e das tardes que passava no Espaço Azul. Certa feita, um dos pacientes me disse o que vivia dizendo para todo mundo a todo tempo: cada um vem ao mundo viver à sua própria sorte.

Mas a sorte, essa raridade que dança a música do acaso, jorra em abundância para uns e pinga em comedimento para outros. Lembrei da imagem de Carlinhos sorridente, acenando, enquanto fechava o portão para ir embora e pensei: lá foi ele em busca da sua.

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