Cicatriz

11.5.14 Cabotino 0 Comentarios


Naquele tempo eu acho que tinha uns dez para onze anos, um pouco mais ou um pouco menos que isso. Estudava pela manhã e tinha o resto da tarde para maloqueirar à toa.

Por esse tempo, andava muito com Ildo, um amigo que tinha duas irmãs gatíssimas e que morava na rua antes da minha, não me lembro muito bem dele agora, o que ficou dele para mim hoje é que tinha uma cicatriz no pescoço e era banguelo, ou como se dizia: “janelinha” pois perdera os dentes de leite da frente tarde demais.

Assim como ele, também tinha minha cicatriz, só que no braço esquerdo por conta de uma queda de bicicleta.

Outra coisa que lembro é que diziam que éramos muito parecidos, as pessoas achavam que fossemos irmãos. Eu e Ildo irmãos... Imaginem a fuleiragem que seria eu babando por minhas “irmãs” hein? Vixe, deixemos esta doidera pra lá.

Ildo era mais velho do que eu cerca de dois anos e esta diferença, nesta faixa etária, faz muita diferença, mas nos dávamos muito bem, eu levava os meus bonecos, em sua maioria velhos e quebrados – O He-Man já não tinha dedos e o G. I. Joe já não tinha braços –, e ele me deixava jogar Space invaders em seu Atari com as suas irmãs, era uma loirinha e uma morena, eram muito bonitas e o que eu não daria para revê-las só para lhes perguntar os nomes que infelizmente foram embora assim como quase tudo daquela época – as pessoas perdem alguma coisa em nossa memória quando não lembramos os seus nomes, caras e nomes são como unha e esmalte em minha memória.

Foi nesta época que chegou a neta do Velho, acho que era neta ou alguma coisa parecida. O Velho morava a duas casas abaixo da de Ildo e era muito chato conosco, por exemplo: quando começávamos a jogar bola ele chegava e pedia para pararmos de jogar por conta do barulho, dor de cabeça etc., mas nós éramos pirracentos e continuava mesmo assim, era algo de tomar o espaço que era nosso, aquela rua era nossa desde a Copa de 1990 quando pintamos o chão com os dizeres: “o tetra é nosso!” e a decoramos com as bandeirinhas em verde e amarelo como um varal de roupas. Hoje a tiração de onda dos meninos não tem essa de tomar a rua e tal, eles brigam entre eles e contra todo mundo de graça, ninguém entende, aliás, como um montão de coisa hoje em dia, ninguém entende.

Lembro-me desta menina, a que chegou à casa do Velho, porque eu acho que foi um dos meus primeiros amores, eu tive vários primeiros amores e ainda hoje os tenho, é curioso isso, mas acho que um montão de gente tem isto também, se não tem, menos mal.

Lembro-me dela por conta de uma cicatriz de queimadura que ela tinha no pescoço e que estranhamente a deixava mais bonita, uma beleza de lobo guará, uma vez vi um lobo guará na tevê e ele ali tranquilo no canavial, esperando alguma coisa. A menina na casa do Velho lembrava o lobo guará, quieta ali em cima do muro branco em cal da casa do Velho, na dela e nos olhando o tempo inteiro. Dava para ver que era do interior, menina do mato.

Como eu gostei desta menina, por ela eu era capaz de dar uma volta na rua, indo e voltando, plantando bananeiras. Eu voltava da escola e comia nadinha no almoço, era pensar nela e o estômago esfriava e a fome ia embora apenas ao toque de sua lembrança. Era um sentimento sem maldade porque neste tempo eu jogava Space invaders e lia a série das Aventuras Fantásticas de P. Jackson.

Após o almoço eu me dirigia direto para a nossa rua, era assim que eu me referia à rua que trabalhei por ela e deixe-a um pouco parecida comigo, pelo beco que ligava a minha casa, na rua debaixo, à nossa rua.

Lembro-me bem do rosto daquela menina com cicatriz no pescoço, acho que as cicatrizes dos outros ficam também cravadas em nós como a extensão de uma dor não sentida, mas mais ou menos entendida e sentida por nós. Era morena, parecia uma vagem de amendoim cozido. Tinha ou ainda tem um olhar de cadela vira-lata quando rever o dono. Mas, às vezes, este olhar era tão grande pra cima de mim, acho que devia ser por conta da altura do muro da casa do Velho, mas acho que não, o olhar dela às vezes lembrava o da professora Solange na terceira série, uma coroa com mais de um 1,80m e que uma vez me disse: “você é sonso”.

Ah! Ela tinha ou tem ainda, sei lá, um cabelo lisão à altura do pescoço cuja cor misturava-se ao da pele do pescoço e ao da cicatriz, parecia até o encontro da areia da praia de Boa Viajem quando vem à água das ondas e deixa a areia toda moreninha.

Minha desculpa quando saia de casa após, vamos dizer assim, o almoço, era a casa de Ildo que me deixava próximo da do Velho onde se encontrava ela. Ela ficava lá esperando alguma coisa. Olhando-me sempre de cima e eu gelava e sentia minhas mãos molhadas e acho que ficava branquinho porque uma vez umas das irmãs de Ildo me flagrou em alguma coisa e disse que eu parecia o lençol do Gasparzinho, fiquei sem entender, se o Gasparzinho é um fantasma por que ele tem lençol? Sei lá, vai entender as meninas.

Eita que esqueci de dizer a vocês que nesse tempo eu era da uma timidez muito maior do que a que tenho hoje, com um agravante, naquela época eu não bebia, e o tímido que não bebe faz mais bobagens do que um homem embriagado.

Houve um dia em que a menina da cicatriz me chamou ao muro da casa do Velho e quase que eu tenho um troço antes de ir atendê-la. Acho que pensei: “vou falar com ela... Pegar em suas mãos... Olhá-la e quem sabe beijá-la e se Velho não tiver em casa etc...”. Uma vez em sua frente, acho que me encontrava mais pálido do que primeira comunhão de Sivuca. Ela me perguntou: “você conhece aquele menino ali?” e apontou para Ildo. Eu falei: “quem, Ildo? Sim, ele é meu amigo”. Daí ela disse isso: “pegue isso aqui e dê a ele” e me deu um papel dobradíssimo como se eu conseguisse desdobrá-lo e lê-lo no curto caminho da casa do Velho para a casa de Ildo que, estava sentado em frente a sua casa. Saí do muro da casa do Velho como um garoto de recados e com aquele gosto na boca que se perguntava algo assim: “por que este bilhete não foi para mim?” Sabe aquela sensação que você tem quando leva uma queda no chão e você, uma criança, não pode chorar porque os outros estão olhando e é só o primeiro da plateia soltar a gargalhada e seu choro vai junto? Pois é, só faltou a primeira gargalhada para eu começar a chorar ali mesmo. Entreguei o bilhetinho a Ildo que pegou o papel e leu: “quero te conhecer”. Foram três palavras que ficaram marcadas em mim como cicatriz.

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