Boa noite, Cinderela
Com
a quinzena no bolso, Neguinho saiu para a Terça Negra. Na favela a turma o
chamava de “Vida Matemática”, cheia de problemas. Uma vez o bioquímico do
laboratório de análises clínicas encontrou uma forte concentração de urina em
seu uísque.
Na
Terça, chegou à caída da noite. Puxou uma cadeira amarela estampada com a logomarca da Skol e ficou olhando a igreja e se perguntando: “porra, eu não queria
ser o ajudante deste pedreiro que levantou isso, que mão de obra”. Lá em cima
São Pedro todo vermelho, não só com os pés, mas com o corpo todo de barro,
sisudo e provavelmente não assentindo aquela profanação, logo ali no pátio
sagrado que leva o seu nome. O sagrado quando junta-se com o profano produz uma
geleia geral chamada, Recife.
Neguinho,
ainda com os cabelos molhados do banho que tomara na ôia, estava auxiliando Dão,
o pedreiro que estava fazendo a reforma de uma casa na Rua dos Martírios.
Esguio – um metro e oitenta e oito. Uns vinte e oito anos, com um corpo já de
trinta e pouco e um pulmão e fígado de poeta dos anos setenta. Moreno. Mãos
encaliçadas. Pés de nº quarenta e cinco. Rosto afilado e pele fustigada pelo
sol e pela orfandade de pai e pão desde a tenra idade. Mochila nas costas que
levava uns trapos de roupas suadas; uma tupperware
vazia e uma colher. Boné da Volcon na
cabeça, evidentemente, falsificado e comprado no rateio na Rua do Rangel a um
brasileiro, pois os chineses não fazem desconto nem no pisca-a-pisca Made In Taiwan. Uma Havaiana preta
gigantesca nos pés. Uma regata com as cores da Jamaica e uma bermuda jeans já
começando a desbotar, daquelas que o cara compra na Feira de Cavaleiro em
janeiro e torce para não trocar os zipes antes de março.
Pediu
uma Brahma gelada ao garçom. Os olhos fumaçando, tinha dado uma bola ali na Maciel
Pinheiro, em baixo do Casarão onde morara Clarice Lispector, e foi direto para
o Pátio esperar o show de Cabrobó, uma banda de reggae que iria tirar uns
covers de Edson Gomes.
A
cerveja chegou e ele ligou aquele Hollywood selvagem, tomou um gole da espumosa
e soltou a fumaça da tragada, primeiro pela narina, e o final pela boca. Sentiu
o corpo relaxar e jogou as costas para o respaldo da cadeira de plástico
amarela.
Havia
pouca gente àquela hora no Pátio, era cedo, por volta das 18h. Próximo dele,
encostada a parede de um Casarão vizinho ao Bar que estava lhe servindo. Uma
mulher loira, oxigenada é claro, pois suas sobrancelhas eram de cor azeviche.
Cabelos no ombro. Uns trinta anos, mas aparentando ter quarenta e pouco e um
bolso de dez anos. Maquiagem carregada. Uma leve barriguinha. Pelos descoloridos.
Uma bolsa a tiracolo. Saia jeans e o celular no ouvido.
Ele
a olhou e ela tirou a visão, tapeando. Após uns minutos ela se aproximou dele e
perguntou: “Ei Legal, tem um cigarro desse aí pra mim?” Ele respondeu – “Tenho
sim, amiguinha. Aceita uma água, um copo de cerveja?” Ela retrocou – “Rapaz,
vou até aceitar a cerveja porque estou esperando uma amiga aqui há um tempão e
ela nem atende o celular”.
Neste
instante, Neguinho pediu outra cerva ao garçom e mais um copo, curioso, aquela
ainda estava cheinha, mas a iminência de uma safadeza o atiçou e que o fez mais
mão aberta aquela altura.
-
Qual teu nome, Morena?
-
Morena, Legal?
-
Foi mal, é o costume.
- É
Sineide, mas pode me chamar de Synd como todos me chamam lá em casa e na rua,
eu até assino às coisas, às vezes como Synd, com ípsilon e tudo. E o teu Fio?
Já
não era mais Legal, agora é Fio. Mais íntimo como quem enrola o interlocutor
enrolando o fio do telefone distraidamente, como naqueles tempos em que o
celular não monopolizava a fala sedentária.
-
Jefferson, mas todo mundo me chama de Neguinho, pode ficar à vontade também.
Então, Maga segura às pontas aí que eu vou ali dar uma mijada. Já, já eu volto.
Ela
ficou segurando às pontas e Neguinho foi dar cabo de uma pontinha que ficou do
baseado de horas atrás e iria fumá-lo depois de dar uma mijada ao lado esquerdo
da parede da Igreja, aquele hábito do flaneur
recifense repleto de ácido úrico. Já no caminho Neguinho esqueceu do isqueiro
na mesa e ao voltar para busca-lo flagrou Synd deitando um pó branco em seu
copo de Brahma já meio morno – temperatura tipicamente recifense também. Ela
quando o viu voltando assustou-se e esperou o esporro e não adiantava correr,
ele a pegaria em duas passadas e passaria o rôdo. Esperou e qual não foi a sua
surpresa.
- Ôxe Maga, porque parou? Bote mais deste negócio aí. Ele da lombra não é? Bote
mais. Bote mais.
Ela
ficou toda sem jeito e guardou o recipiente de volta na bolsa e saiu com essa.
-
Ei Legal, vou indo nessa que a minha amiga me mandou uma mensagem aqui e está
me esperando lá no espetinho do Pátio do Carmo. Vou nessa. Falou.
-
Oxe, já vai? Vá lá e boa noite, Synderela.
kkkkkkkkkkkkkk Vai lá Synderela! Muito bom!
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