Boa noite, Cinderela

28.1.14 Cabotino 1 Comentarios



Com a quinzena no bolso, Neguinho saiu para a Terça Negra. Na favela a turma o chamava de “Vida Matemática”, cheia de problemas. Uma vez o bioquímico do laboratório de análises clínicas encontrou uma forte concentração de urina em seu uísque.

Na Terça, chegou à caída da noite. Puxou uma cadeira amarela estampada com a logomarca da Skol e ficou olhando a igreja e se perguntando: “porra, eu não queria ser o ajudante deste pedreiro que levantou isso, que mão de obra”. Lá em cima São Pedro todo vermelho, não só com os pés, mas com o corpo todo de barro, sisudo e provavelmente não assentindo aquela profanação, logo ali no pátio sagrado que leva o seu nome. O sagrado quando junta-se com o profano produz uma geleia geral chamada, Recife.

Neguinho, ainda com os cabelos molhados do banho que tomara na ôia, estava auxiliando Dão, o pedreiro que estava fazendo a reforma de uma casa na Rua dos Martírios. Esguio – um metro e oitenta e oito. Uns vinte e oito anos, com um corpo já de trinta e pouco e um pulmão e fígado de poeta dos anos setenta. Moreno. Mãos encaliçadas. Pés de nº quarenta e cinco. Rosto afilado e pele fustigada pelo sol e pela orfandade de pai e pão desde a tenra idade. Mochila nas costas que levava uns trapos de roupas suadas; uma tupperware vazia e uma colher. Boné da Volcon na cabeça, evidentemente, falsificado e comprado no rateio na Rua do Rangel a um brasileiro, pois os chineses não fazem desconto nem no pisca-a-pisca Made In Taiwan. Uma Havaiana preta gigantesca nos pés. Uma regata com as cores da Jamaica e uma bermuda jeans já começando a desbotar, daquelas que o cara compra na Feira de Cavaleiro em janeiro e torce para não trocar os zipes antes de março.

Pediu uma Brahma gelada ao garçom. Os olhos fumaçando, tinha dado uma bola ali na Maciel Pinheiro, em baixo do Casarão onde morara Clarice Lispector, e foi direto para o Pátio esperar o show de Cabrobó, uma banda de reggae que iria tirar uns covers de Edson Gomes.

A cerveja chegou e ele ligou aquele Hollywood selvagem, tomou um gole da espumosa e soltou a fumaça da tragada, primeiro pela narina, e o final pela boca. Sentiu o corpo relaxar e jogou as costas para o respaldo da cadeira de plástico amarela.

Havia pouca gente àquela hora no Pátio, era cedo, por volta das 18h. Próximo dele, encostada a parede de um Casarão vizinho ao Bar que estava lhe servindo. Uma mulher loira, oxigenada é claro, pois suas sobrancelhas eram de cor azeviche. Cabelos no ombro. Uns trinta anos, mas aparentando ter quarenta e pouco e um bolso de dez anos. Maquiagem carregada. Uma leve barriguinha. Pelos descoloridos. Uma bolsa a tiracolo. Saia jeans e o celular no ouvido.

Ele a olhou e ela tirou a visão, tapeando. Após uns minutos ela se aproximou dele e perguntou: “Ei Legal, tem um cigarro desse aí pra mim?” Ele respondeu – “Tenho sim, amiguinha. Aceita uma água, um copo de cerveja?” Ela retrocou – “Rapaz, vou até aceitar a cerveja porque estou esperando uma amiga aqui há um tempão e ela nem atende o celular”.

Neste instante, Neguinho pediu outra cerva ao garçom e mais um copo, curioso, aquela ainda estava cheinha, mas a iminência de uma safadeza o atiçou e que o fez mais mão aberta aquela altura.
- Qual teu nome, Morena?
- Morena, Legal?
- Foi mal, é o costume.
- É Sineide, mas pode me chamar de Synd como todos me chamam lá em casa e na rua, eu até assino às coisas, às vezes como Synd, com ípsilon e tudo. E o teu Fio?

Já não era mais Legal, agora é Fio. Mais íntimo como quem enrola o interlocutor enrolando o fio do telefone distraidamente, como naqueles tempos em que o celular não monopolizava a fala sedentária.

- Jefferson, mas todo mundo me chama de Neguinho, pode ficar à vontade também. Então, Maga segura às pontas aí que eu vou ali dar uma mijada. Já, já eu volto.

Ela ficou segurando às pontas e Neguinho foi dar cabo de uma pontinha que ficou do baseado de horas atrás e iria fumá-lo depois de dar uma mijada ao lado esquerdo da parede da Igreja, aquele hábito do flaneur recifense repleto de ácido úrico. Já no caminho Neguinho esqueceu do isqueiro na mesa e ao voltar para busca-lo flagrou Synd deitando um pó branco em seu copo de Brahma já meio morno – temperatura tipicamente recifense também. Ela quando o viu voltando assustou-se e esperou o esporro e não adiantava correr, ele a pegaria em duas passadas e passaria o rôdo. Esperou e qual não foi a sua surpresa.

- Ôxe Maga, porque parou? Bote mais deste negócio aí. Ele da lombra não é? Bote mais. Bote mais.

Ela ficou toda sem jeito e guardou o recipiente de volta na bolsa e saiu com essa.

- Ei Legal, vou indo nessa que a minha amiga me mandou uma mensagem aqui e está me esperando lá no espetinho do Pátio do Carmo. Vou nessa. Falou.
- Oxe, já vai? Vá lá e boa noite, Synderela.



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