Traste
Hoje à tarde
meu violão olhou para mim com seu único olho empoeirado e blue, disse-me: vem cá.
Eu me cheguei todo envergonhado, como quem cometeu um pecado,
mas aos poucos ganhei confiança. Peguei-o e o pus junto ao meu peito e, em um
ritual muito delicado, comecei a limpá-lo, tirando sua roupa de poeira. Afinei
o seu nylon e ele foi ficando todo vaidoso. Ganhou corpo e de ré e já todo fora
de si encostou-se mais ao meu peito. Do meu lado, estralei os dedos e comecei a
acariciá-lo devagar. Debaixo para cima para sentir o seu corpo recém-afinado.
Seu som dilatou-se no espaço como um motor do tempo – circular e cromático. Orgulhou-se
de sua desenvoltura e ficou todo tonal. Encapei meus dedos direitos com uma
palheta e toquei uma balada em sol que fez até o Sol lá em cima se enrubescer.
Depois do estribilho eu o tirei junto do peito e larguei-o no canto sozinho.
Lá do canto
ele disse-me: de todos os meus trastes, tu és o maior.
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