Breve comentário sobre uma crítica

28.10.15 Unknown 0 Comentarios


por ROSANO FREIRE*

Recentemente o FoiHoje publicou uma crítica, assinada por Renato K. Silva, sobre o já tão comentado filme de Anna Muylaert, "Que Horas Ela Volta?" (2015). Nela, Silva, em total consonância com a recepção do público e da intelligentsia brasileira, projeta uma avaliação sobre as relações entre patrões e empregados que, mal ou bem, o filme tematiza.

Confesso que considero esta questão de menor estatuto perante a obra de Muylaert - e não deixo de me espantar com o quanto de atenção que ela conseguiu atrair. Mas o autor prossegue nessa linha e conclui, lançando mão também de uma rápida comparação com o filme "Casa Grande" (Felipe Barbosa, 2014), que a diretora deixa escapar por entre os dedos a chance de "radicalizar" as relações de classe na sociedade brasileira.

Tomo a análise publicada aqui neste blog como sintoma de um estado muito mais geral da crítica cinematográfica brasileira. O gosto pelas "questões sociais" que tem uma obra ou pela "mensagem social" que passa um filme - que, como disse, tomou efeito cascata na fruição de "Que Horas Ela Volta?" - é a menina dos olhos da intelectualidade brasileira dedicada ao cinema, incrustada nas universidades ou em parte da imprensa.

O ponto, contudo, deita raízes profundas na história brasileira e pode ter sua gênese identificada com o advento do "Cinema Novo". Não é fato desconhecido que o projeto estético dos cinemanovistas pode ser resumido na ideia de um "cinema autoral". Subjacente a este conceito, jaz a ideia de que o cinema popular, de massas, é algo genuinamente ruim, justamente porque fruto da indústria cultural, ou, em última instância, do regime capitalista. O "cinema autoral", portanto, vinha se opor a esta arte "alienada".

Foi desta forma que o "Cinema Novo" forjou a crítica que solapou, no Brasil, o status do cinema comercial - mecanicamente associado à pornochanchada. Cineastas como Walter Hugo Khouri, que nos legou uma extensa filmografia e alguns nossos melhores esforços, são amiúde, nas graduações e cursos de crítica e história do cinema, classificados como "autores de pornochanchadas". O fosso está cavado: tudo o que se produziu no Brasil, nas décadas de 1970 e 1980, e que não tinha pretensões de "cinema novo", é rapidamente classificado como pornochanchada - tida, de antemão, como algo esteticamente raso.

Vejam: a questão não é, aqui, reproduzir para o outro lado o preconceito com as pornochanchadas, e, dessa forma, pinçar - agora sim! - um novo e autêntico cânone nacional. A pornochanchada foi o modo como se refletiu, no Brasil, a revolução comportamental do século passado. Tem seu valor para o nosso cinema. Mas ela é um capítulo do nosso cinema popular, não ele por todo e completo. E mais: confundir tudo o que se produziu no Brasil nas duas décadas supracitadas com esse tipo de cinema impede qualquer discussão razoável. 

Fecho o parênteses e retomo o ponto inicial do texto com a intenção de concluí-lo. A "armadilha conceitual" dos cinemanovistas, que mora no fundo de seu projeto estético de aspirações "engajadas", impregnou o campo intelectual brasileiro. Os críticos debitários desta tradição vêm, década após década, reproduzindo o preconceito ou o desprezo com o cinema popular. Parece-me que é esse o caso da crítica de Silva, quando clama por um tensionamento maior das relações patraões-empregados e quando reclama o "novelismo" que ofusca as principais questões que o filme deveria abordar.

O que esquecem os cinemanovistas e aqueles que se encarregam de levar à frente o seu legado - que tem seu pontos altos, sem dúvidas - é que o cinema é um tipo de prática que, desde cedo, se funda sobre a conjugação de tecnologia e espetáculo. A aproximação com o mercado nunca lhe foi estranha - ao contrário, muitos dos grandes filmes que a história mundial ostenta são oriundos deste casamento. Portanto, e penso que agora já se pode dizer de maneira direta: o que é comercial ou popular não é ruim por excelência.

Mas isso significa dizer, então, que o ponto de vista expresso na referida crítica é errado? Não necessariamente. Que ele não deva mais ser formalizado? Também não. Mas ele demarca de maneira interessante a fronteira que separa quem aprecia o cinema como arte (industrial e coletiva, mas ainda arte) e quem o toma como mero engenho ideológico.

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* Doutorando em Ciências Sociais pela UFRN.









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