Que horas ela volta? a luta de classes ao gosto do Projac

17.10.15 Cabotino 1 Comentarios


por RENATO K. SILVA

Costumo dizer que o Brasil não é o país do futebol, mas sim o da telenovela, porque o nobre esporte bretão só é transmitido, nos dias de semana, após o produto de excelência da Rede Globo.

Dito esta premissa, vou falar do filme que extrapolou o pequeno circuito cinematográfico brasileiro e ganhou às redes sociais, às ruas e transbordou os cadernos de cultura dos jornais – Que horas ela volta? (Anna Muylaert, 2015).

Antes, cabe frisar que não tenho nada contra o gênero da telenovela. Muitas vezes apontado como um segmento “menor” do audiovisual pelos críticos, sobretudo os acadêmicos que desconhecem o Brasil “profundo” apresentado pelas novelas da Rede Globo. O que me incomoda nas telenovelas é que, em sua grande maioria, elas sonegam do espectador uma maior problematização das personagens e enredos para além do dualismo entre: mocinho vs. vilão.

Assisti Que horas ela volta? no Cinema do Museu, no bairro de Casa Forte, Recife, em sessão lotada numa tarde de sábado. Após o fim do filme, percebi o semblante descarregado dos espectadores, um clima de êxtase e efusão. Mais ou menos igual ao que temos quando saímos de um estádio após uma convincente vitória de nosso time do peito.

Entretanto, comecei a desconfiar daquilo que acabara de ver. Uma ruga de desconfiança e criticismo começou a crescer dentro de mim. Segue então algumas de minhas inquietações sobre o filme.

Que horas ela volta? narra a história de uma família rentista do Morumbi (bairro de classe média alta de São Paulo) nucleada por pai, mãe, filho, empregada fixa (que “mora no serviço”) e um cachorro. Nos moldes das produções da Globo Filmes – que inclusive assina a coprodução do longa-metragem.

O filme começa com um plano-aberto pegando a piscina da casa do Morumbi onde encontram-se uma criança e uma mulher. Em seguida, num corte temporal/elíptico de dez anos, descobrimos que a criança é Fabinho (Michel Joelsas) e a mulher é a empregada da família, Val (Regina Casé). E a pergunta que a criança faz na cena anterior para a empregada: que horas ela volta? É para saber o horário de regresso do trabalho da mãe/patroa Bárbara (Karine Teles). Por fim, compõe o quadro doméstico o diletante artista plástico em “eterno estado sabático”, Carlos (Lourenço Mutarelli) pai de Fabinho e marido de Bárbara.

O núcleo familiar vivendo em perfeita harmonia é sacudido com a vinda, direto de Pernambuco, de Jéssica (Camila Márdila) filha de Val, para passar uns dias na casa do Morumbi, pois fará o vestibular da Fuvest – arquitetura na FAU-USP. Tendo em vista que sua mãe, Val, "mora no serviço".

Jéssica não é apenas uma adolescente nordestina pela primeira vez na capital paulista, ela traz a tiracolo além de um relativo capital escolar: uma empáfia comportamental típica de uma geração que cresceu na euforia econômica, com ênfase no consumo de bens e serviços, dos anos Lula/Dilma. E é essa empáfia que lhe concederá acesso a cômodos e regalias até então destinadas às visitas da casa, e não para a filha da empregada que “não sabe qual é o seu lugar”.

Com a empáfia de Jéssica no interior da narração, o filme gera um grande desconforto na plateia porque instaura-se um forte contraste com a submissão de sua mãe, a empregada Val que, começa a ter uma confusa relação com a filha/hóspede?

Nesta toada, Jéssica começa a embaralhar os papéis sociais até então rígidos na economia financeira e emocional da casa do Morumbi. Com isso, a empáfia de Jéssica – tomar o sorvete do patrão, entrar na piscina e dormir no quarto de hóspedes – começa aos poucos a ganhar o coração e a vontade de Val. Mesmo que sua revolta fique localizada no furto de um conjunto de xícaras que havia presenteado a patroa dias atrás, e de chapinhar em uma piscina quase seca que nunca entrara em dez anos de serviços prestados na residência, em condições precárias de trabalho.

Em resumo, Jéssica representa o “fim” da reprodução social (filho de peixe, peixinho é). Pus a palavra “fim” entre aspas porque Jéssica reproduz a condição de mãe solteira desterrada como fora o caso de sua mãe, Val. Negando-se a uma postura subserviente tal qual sua mãe, Jéssica é um exemplo de que o país mudou. O filho do pobre agora pode estudar na faculdade onde estuda o filho do patrão da mãe. O filho do pobre agora pode viajar de avião. O filho do pobre agora... E outras aquisições sociais do Lulismo. 

Agora, Que horas ela volta? pinta um perigoso quadro de meritocracia quando assinala a saída pela educação. Ou seja, o “fim” da reprodução social é apontada pelo iminente sucesso de Jéssica no vestibular. E o perigo nesta forma de discurso está justamente em ver a educação como panaceia das mazelas sociais brasileira como se, mecanicamente, dando acesso à educação para os filhos dos pobres, a desigualdade brasileira diminuísse. Numa sociedade de classes, educação sem distribuição de renda é como tapar o sol da desigualdade com a falaciosa peneira da meritocracia.


Com o final esfuziante do longa duas coisas passaram, até onde pude acompanhar no debate sobre o filme, ao largo da discussão: o assédio sexual de Carlos perante Jéssica e a omissão dos direitos trabalhistas que Val nem esboçou reivindicar quando pediu demissão do emprego. Acredito que são duas pautas que não deveriam passar ilesas na narrativa do filme.

Que horas ela volta? me fez lembrar o filme Casa Grande[1] (Fellipe Barbosa, 2014), com um porém: Casa Grande é a visão do patrão sobre os empregados a partir do olhar da classe média (realizadores). E o filme da Anna Muylaert é o contrário: é a visão dos empregado(s) sobre os patrões a partir do olhar da classe média (realizadores). 

Neste sentido, o filme do Fellipe Barbosa conseguiu fazer um exercício de alteridade mais franco e sincero. Já o da A. Muylaert perdeu a oportunidade de ser mais contundente porque optou por recursos narrativos típicos da telenovela brasileira: ênfase no star system carismático (Regina Casé); maniqueísmo na elaboração dos personagens como Bárbara (espécie de mãe/madrasta que pratica “barbaridades” com os subalternos); além dos tradicionais clichês sobre os gostos de classe, o barroquismo extravagante de Val vs. o minimalismo requintado dos patrões.


Em suma, Que horas ela volta? tem o sabor da luta de classes ao gosto das produções do Projac, doce. Talvez por isso o filme tenha conquistado ótima recepção do público que, familiarizado com a teledramaturgia, viu a televisão investindo na linguagem cinematográfica, aliás, é um dos mais recentes empreendimentos da Globo não só por meio do seu produto por excelência, as novelas, como também a partir de sua produtora, Globo Filmes. Desta maneira, o filme da A. Muylaert perdeu a oportunidade de radicalizar a problemática que aborda, as relações de classe, dentro do muitas vezes insipiente cinema comercial brasileiro, porque optou ficar na zona de conforto da linguagem televisiva.

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Escritor e doutorando em Ciências Sociais pela UFRN.


[1] Para mais detalhes sobre este filme, conferir: http://foihoje.blogspot.com.br/2015/10/cronica-de-uma-casa-grande-assassinada.html Acesso em: 10 de out. 2015.

Um comentário:

  1. Essa análise que fazes do filme "Que horas ela volta?" me ajudou a entender o incômodo que senti ao assisti-lo. Creio ter sido o tom próximo da essência novelística que me fez não achar a película tão boa. Em alguns momentos achei-o enfadonho até. Realmente "Casa grande", para mim foi uma surpresa bem melhor, apesar de que este poderia ter sido mais profundo também. Mas valeu afinal de contas!

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