Dissabor

26.10.15 Unknown 0 Comentarios


Despertei hoje com aquela amarga sensação de quem acaba de ver um filme ruim. O sonho, porém, não lembrava. Afortunados são os que recordam-se de seus sonhos, e nutrem-o de não sei quantos significados - geralmente, divertidos e estapafúrdios na mesma medida. Furtado das imagens noturnas, estaria condenado a saborear um amargor sem lastro, como quem é penitenciado sem saber o porquê? Não estando no pitoresco do sono, a causa da amargura só poderia residir nas outras imagens, as da vida real, que chamamos real, e as quais damos um ordenamento tanto lógico, quanto confortável. Mas não havia risco de argumento palatável, dado que as lembranças do dia anterior também escasseavam. Já perdia qualquer tipo de encanto - maravilhoso ou perverso - que uma vida oca pode ter. Angústia sem fundo é igual a prédio sem base, balão sem ar, não se sustenta, desmorona. Impressiona a eficiência que o nosso corpo, em toda sua integridade psicossomática, pode ter, foi o que pensei. Nem precisou do pretexto das moléculas de álcool etílico - jogou, sumariamente, a memória desagradável para escanteio. Só depois de tempo considerável é que ele vai revolvendo algumas lembranças, pingando em conta-gotas o mar de receio, e como um mosaico o pesadume vai se desenhando. Como manda o lugar-comum, o arrependimento dá o matiz do dia, e eu preferi honestamente ter continuado a flutuar na maciez da dúvida. Daí surge uma necessidade descomunal de falar, revelar, declarar, dizer o que já foi dito, mas com uma pulsão vital tão nova que tornaria tudo espontâneo e genuíno, à luz do que as coisas se assentariam naturalmente em seu lugar. Mas a vontade que vem em torvelinho, subitamente, arrefece e se dissolve na boca, deixando um gosto estranho, amargo, de quem acabou de assistir a uma péssima película, e que, por isso, não tem nada a dizer.

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