Crônica de uma casa grande assassinada
Casa Grande (Fellipe
Barbosa, 2014) é um filme muito particular na cinegrafia nacional que aborda a
relação entre senhor e subalterno – empregador e empregado. Particular porque
escapa dos clichês que geralmente envolvem as produções com esta temática. Por
exemplo: o abuso moral, sexual e financeiro por parte dos patrões; o jogo de
chantagens, a resistência utilitarista e a alienação em relação aos direitos
trabalhistas, por parte dos empregados.
O
longa-metragem narra a história de uma família nuclear – pai, mãe e casal de filhos
adolescentes – de classe média alta do Rio de Janeiro que, paulatinamente, vê
seu patrimônio ser dilapidado pelo orgulho do provedor da família, Hugo
(Marcello Novaes), que não assumi estar falido e, por conseguinte, não busca
formas de diminuir os danos pela queda do patrão de vida, vendendo a mansão da
família, por exemplo. Parece que a Casa
é a pele da família e como um caracol, ela se encolhe dentro do casulo para se
proteger das intempéries externas.
A
queda do padrão de vida é retratada com perícia pela fotografia de Pedro Sotero
(fotógrafo que também trabalhou em O som
ao redor [Kleber Mendonça Filho, 2012]), como nos enquadramentos que
retratam a chegada dos empregados à mansão, localizada em um condomínio fechado
da Barra da Tijuca, para trabalhar logo pela manhã: a cozinheira e o motorista.
Ambos são recepcionados pelo terceiro empregado, a arrumadeira Rita (Clarissa
Pinheiro) que dorme em uma pequena casa ao fundo da mansão. No decorrer da
narrativa, o número de empregados vai diminuindo na Casa e isso é evidenciado na rarefação deles por ocasião de suas
chegadas para o trabalho. P. Sotero, através dos planos longos e abertos, nos
mostra a Casa sendo “assassinada” a
partir das sucessivas ausências dos seus funcionários.
A
escolha dos longos planos abertos realizados por P. Sotero, nos remete
imediatamente ao O som ao redor. Tais
recursos estilísticos dão ênfase ao ritmo “modorrento” de Casa Grande, tal qual o descrito por Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala, que levavam
os senhores e senhoras de engenho a uma completa prostração no dia a dia da
Casa Grande. No filme de Felipe Barbosa, a “modorra” se dá quando vemos a
patroa da casa, Sônia (Suzana Pires) dando aulas particulares de francês,
acompanhadas com chá e biscoitinhos, ou quando Hugo encontra-se refestelado na
jaguzzi tomando um drink, ou ainda, quando os filhos são levados à escola com
motorista particular.
A
“modorra” vai sendo contrastada a partir do momento em que a Casa começa a ruir, isto é, perder sua capacidade
de conforto devido à própria ruína financeira da família. A preocupação com as
luzes ligadas nos cômodos vazios; com a conta do telefone; a troca do
ar-condicionado pelo ventilador; a falta de certos itens de consumo até há
pouco presente e, por fim, as demissões do motorista (Severino) e da
arrumadeira (Rita) são o canto do cisne na economia emocional das personagens,
sobretudo para Jean (Thales Cavalcanti). Jean, tinha na empregada a sua
companheira das noites solitárias (sem sexo); e no motorista, seu companheiro
de anos no translado para a escola, não só o confidente, como o iniciador nos
arcanos da sexualidade – Jean tem sua primeira experiência sexual por
intermédio de Severino, que o levou a um prostíbulo.
Após
a demissão do motorista, Jean começa a ir à escola de ônibus, para pavor dos
pais e satisfação dele que, finalmente, pôde andar pela cidade com mais
“liberdade”. Jean estuda em uma escola (São Bento) segregada por gênero, nela,
só há homens. E isso diz (veladamente) a relação que Jean estabelece com as
mulheres no filme: certa inapetência.
Numa
das idas à escola de ônibus, Jean conhece uma menina da escola pública, Luiza
(Bruna Amaya), cabocla descendente de pai japonês com mãe negra, ela mora na
periferia de São Conrado. Em seguida, ambos começam a namorar e no dia que Jean
a leva para conhecer seus pais em um churrasco na Casa, há uma discussão sobre cotas raciais. Na discussão, Luiza é a
favor das cotas raciais no ensino superior por acreditar que o Estado
brasileiro precisa reparar a histórica espoliação da população negra no país. A
discussão gera um mal-estar entre Luiza e os pais de Jean. No fundo, a questão
de raça e classe sobressai-se, veladamente, no desconforto entre os pais de
Jean e Luiza. Pois, no fundo os pais de Jean não admitem que ele namore uma
menina negra, da periferia e com consciência de classe.
Jean,
com a insegurança perpassada por uma cultura machista da qual ele foi criado,
não consegue consumar o namoro com Luiza, em um motel, logo após a discussão no
churrasco. Destaque para o banho de Jean na jacuzzi do motel como uma espécie
de retorno a uma familiaridade perdida com o “assassinato” financeiro da Casa.
Existem
dois personagens principais no filme: Jean e a Casa. Jean é um típico garoto da classe média alta, fruto de uma
relação superprotetora e do machismo patriarcal que enfatiza as conquistas do
homem na casa em detrimento das conquistas femininas. Diríamos mais, Jean é a
extensão de sua Casa, quando esta
declina àquele segue o mesmo movimento.
O
pai admira Jean que compõe músicas ao violão e aparentemente vai bem nos
estudos, o que gera ciúmes na filha Nathalie (Alice Melo) que sente-se
preterida no interior da Casa. Pelo
excesso de proteção, é negado a Jean certas informações que seriam fundamentais
para o seu desenvolvimento emocional, por exemplo, quando o motorista Severino
é demitido, Hugo, o pai de Jean, lhe diz que Severino está tirando férias na
Paraíba. Além disso, tanto Hugo quanto Sônia, escondem dos filhos a real
situação financeira da família, o que faz transbordar o desconforto entre os
empregados e os empregadores, devido à crise financeira da família.
O
declínio da Casa é refletido no
fracasso de Jean no dia do vestibular. Acossado pelo turbilhão de
acontecimentos que estão reconfigurando sua vida, e num ímpeto de inquietação,
ele abandona a prova e vai atrás do paradeiro do seu ex-motorista Severino que,
dias antes, tinha-o visto através da janela do ônibus em um ponto de vans de
lotação. Isto é, Severino agora era um motorista de lotação. Ao chegar no
endereço de Severino, após consegui-lo com um fiscal de vans do ponto onde Jean
havia visto seu ex-motorista, Jean se espanta ao descobrir que Severino é
casado com a ex-cozinheira de sua família. Ao encontrá-lo, Jean irrompe em
lágrimas. Era a Casa reencontrando
quem a mantinha em pé.
Casa Grande é
um filme que rompe os lugares-comuns geralmente presentes nos filmes sobre a relação
de classes entre a “Casa Grande” e a “Senzala”, pois a relação entre esses dois
pólos não é reificada pelo puro interesse de ambas as partes – salário x
serviço –, há algo que ultrapassa este utilitarismo. A cena final do filme é a
prova que os afetos extrapolam os ditames da classe social.
Ficha Técnica
Título: Casa Grande (Original)
Ano de produção: 2014
Dirigido por: Fellipe Gamarano Barbosa
Estreia: 25 de julho de 2014 (Brasil)
Duração: 115 minutos
Gênero: Drama
País de origem: Brasil
É
escritor e doutorando em Ciências Sociais pela UFRN.
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