Viagem ao fim da metafísica

10.12.13 Cabotino 0 Comentarios



Leia este texto ouvindo, John Coltrane _My Favorite Things[1]

Mandou a tese às favas naquele instante, não aguentava mais olhar para a tela do computador e espremer o seu cérebro entre os apriorísticos platônicos e os arquétipos bachelardianos – se não há ato inédito em suas experiências com mundo, ver é rever, ou não saber é ignorar – como aponta a teoria do primeiro ou se nossa imaginação é guiada pelos quatro elementos – terra, água, fogo e ar – como aponta as últimas contribuições do segundo. Ele pensou: não custa nada rever alguma coisa lá fora e dialogar com alguns dos elementos.

Saiu de seu quarto no 16ª andar de um apartamento na Av. Navegantes e foi comprar cigarro na Select do posto de gasolina aberto 24h na Av. Conselheiro Aguiar. No caminho, trocou saudações com Juju – uma travesti que costumava lhe pedir cigarro e perguntar como estava a vida. Depois parou para conversar um pouco com Magali – uma garota de programa que recebeu este apelido por que dizem que come muito. Fez o comprimento repentino – Diz Maga, como estão as coisas hoje? Movimento bom? Ela respondeu – Aff, que susto carai chega assim sem cerimônia... Sabes que gosto de preliminares e tal e a esta hora aqui em Boa Viagem o mais besta acende cigarro no relâmpago, chegue mais devagar meu querido, caso contrário me cago. Ambos riram e ela continuou – movimento fraco sabe como é dia 18 é foda e, além disso, estamos ainda em aula, bom mesmo é nas férias que os filhos de papai cansam de bater punheta e vem aqui torrar as mesadas... Olha, dê lavrando que vem um carro aí agora em minha direção e se tu ficar por aqui é queimação pra mim, e eu tenho que levar o Ninho pra Gabi mais tarde, vaza! Vaza! Vaza! – Já vou Maga relaxa aí o piu-piu que já vou, cuidado com o miocárdio porque a burguesia recifense até agora não gosta de necrofilia. Riu com a sua piada jocosa e um pouco pernóstica. Ela respondeu – vai, vai, vai e depois tu me diz o que porra é necrofilia.

Depois de comprar o cigarro ele vinha voltando no sentido da praia e Juju que já sabia dos seus hábitos noturnos gritou – Ei filé me dá um cigarro aí. Ele foi andando em sua direção e lhe deu um cigarro e com uma pergunta. – Juju, como estão às coisas hoje por aqui? – Anda fraco gostoso, sabe como é meio de mês, só chega liso por aqui frescando com a minha cara, já sei o caqueado, carros um ponto zero com fumê e uma pá de tabacudo tirando onda comigo. Sei do que eles precisam, mas como não tenho uma rola quadrada fico por aqui de cara fechada. Vou torcer para pelo menos tirar as passagens do resto da semana e uma ferinha na sexta porque tá foda viu. E tu, ainda com a filosofia que te rouba o sono? Cuidado para não endoidar e ficar igual a estes escrotos que vem por aqui à noite arriar comigo. Quer uma chupada? Pra tu não cobro nada e vai ver que pode até te ajudar com a filosofia. Riram e ele respondeu – Deixa pra próxima Juju, hoje não estou digno para reexperimentar isso. Saiu rindo de sua picardia platônica (uma piada que de tão canastrona assustaria até as sombras da caverna do grego).

Foi andando em direção ao calçadão e para sua surpresa estava rolando uma pelada na areia, ali nas imediações do Acaiaca às três da manhã. Ficou sabendo por uns caras que estavam acompanho a partida que era uma partida valendo duas grades de cerveja e um litro de Johnny Walker vermelho. Os times eram formados por garçons do Ponteio e do Guaiamum e alguns deles vieram acompanhar o jogo do calçadão. Eram seis na linha e um no gol. A partida iria começar. A maré tinha recuado para também assistir o jogo, pois assim como aquela lua minguante se deitando sonolenta entre os edifícios da orla, não queria perder aquela empreitada coletiva que os homens criam para tocar a vida que de tão fatigante fazem eles se solidarizarem gratuitamente – o álcool era uma abstinente justificativa.

A partida acabou 6 a 4 para o pessoal do Guaiamum que saiu gritando e fazendo chacota com os perdedores. Aos vencedores além das batatas o gosto do dever comprido e o privilégio do lugar da piada. Aos derrotados, o gosto amargo e as críticas mútuas. Para o nosso filósofo notívago o que ficou daquilo tudo, além dos três Marlboros consumidos durante o jogo, foi que se não há experiência inédita neste mundo que não passa da representação de um outro já vivido e mais elevado, ou se somos guiados oniricamente pelos imperativos poéticos dos quatro elementos, o que aqueles homens faziam ali então? Divertindo-se? Extravasando de maneira ludopédica a exploração capitalista? O espólio do álcool no final de semana? Creio que nada disso, após esta noite a sua tese vai ganhar algo que não aparecerá em seu currículo Lattes; nos anais de congresso tampouco em sua banca de defesa. Naquela noite não foi nenhuma República, sombras na caverna ou inconsciente coletivo que fizeram aqueles homens unirem-se para jogar bola e, se a vida é tão inevitável quanto a morte, quem faz esta liga é a comunhão seja na Conselheiro Aguiar ou na areia da praia.  

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