Viagem ao fim da metafísica
Mandou
a tese às favas naquele instante, não aguentava mais olhar para a tela do
computador e espremer o seu cérebro entre os apriorísticos platônicos e os
arquétipos bachelardianos – se não há ato inédito em suas experiências com
mundo, ver é rever, ou não saber é ignorar – como aponta a teoria do primeiro
ou se nossa imaginação é guiada pelos quatro elementos – terra, água, fogo e ar
– como aponta as últimas contribuições do segundo. Ele pensou: não custa nada
rever alguma coisa lá fora e dialogar com alguns dos elementos.
Saiu
de seu quarto no 16ª andar de um apartamento na Av. Navegantes e foi comprar
cigarro na Select do posto de gasolina aberto 24h na Av. Conselheiro Aguiar. No
caminho, trocou saudações com Juju – uma travesti que costumava lhe pedir cigarro
e perguntar como estava a vida. Depois parou para conversar um pouco com Magali
– uma garota de programa que recebeu este apelido por que dizem que come muito.
Fez o comprimento repentino – Diz Maga, como estão as coisas hoje? Movimento
bom? Ela respondeu – Aff, que susto carai chega assim sem cerimônia... Sabes
que gosto de preliminares e tal e a esta hora aqui em Boa Viagem o mais besta
acende cigarro no relâmpago, chegue mais devagar meu querido, caso contrário me
cago. Ambos riram e ela continuou – movimento fraco sabe como é dia 18 é foda e,
além disso, estamos ainda em aula, bom mesmo é nas férias que os filhos de
papai cansam de bater punheta e vem aqui torrar as mesadas... Olha, dê lavrando
que vem um carro aí agora em minha direção e se tu ficar por aqui é queimação
pra mim, e eu tenho que levar o Ninho pra Gabi mais tarde, vaza! Vaza! Vaza! –
Já vou Maga relaxa aí o piu-piu que já vou, cuidado com o miocárdio porque a
burguesia recifense até agora não gosta de necrofilia. Riu com a sua piada jocosa
e um pouco pernóstica. Ela respondeu – vai, vai, vai e depois tu me diz o que
porra é necrofilia.
Depois
de comprar o cigarro ele vinha voltando no sentido da praia e Juju que já sabia
dos seus hábitos noturnos gritou – Ei filé me dá um cigarro aí. Ele foi andando
em sua direção e lhe deu um cigarro e com uma pergunta. – Juju, como estão às
coisas hoje por aqui? – Anda fraco gostoso, sabe como é meio de mês, só chega
liso por aqui frescando com a minha cara, já sei o caqueado, carros um ponto
zero com fumê e uma pá de tabacudo tirando onda comigo. Sei do que eles
precisam, mas como não tenho uma rola quadrada fico por aqui de cara fechada.
Vou torcer para pelo menos tirar as passagens do resto da semana e uma ferinha
na sexta porque tá foda viu. E tu, ainda com a filosofia que te rouba o sono?
Cuidado para não endoidar e ficar igual a estes escrotos que vem por aqui à
noite arriar comigo. Quer uma chupada? Pra tu não cobro nada e vai ver que pode
até te ajudar com a filosofia. Riram e ele respondeu – Deixa pra próxima Juju,
hoje não estou digno para reexperimentar isso. Saiu rindo de sua picardia
platônica (uma piada que de tão canastrona assustaria até as sombras da caverna
do grego).
Foi
andando em direção ao calçadão e para sua surpresa estava rolando uma pelada na
areia, ali nas imediações do Acaiaca às três da manhã. Ficou sabendo por uns
caras que estavam acompanho a partida que era uma partida valendo duas grades
de cerveja e um litro de Johnny Walker vermelho. Os times eram formados por
garçons do Ponteio e do Guaiamum e alguns deles vieram acompanhar o jogo do
calçadão. Eram seis na linha e um no gol. A partida iria começar. A maré tinha
recuado para também assistir o jogo, pois assim como aquela lua minguante se
deitando sonolenta entre os edifícios da orla, não queria perder aquela
empreitada coletiva que os homens criam para tocar a vida que de tão fatigante
fazem eles se solidarizarem gratuitamente – o álcool era uma abstinente
justificativa.
A
partida acabou 6 a 4 para o pessoal do Guaiamum que saiu gritando e fazendo
chacota com os perdedores. Aos vencedores além das batatas o gosto do dever
comprido e o privilégio do lugar da piada. Aos derrotados, o gosto amargo e as
críticas mútuas. Para o nosso filósofo notívago o que ficou daquilo tudo, além
dos três Marlboros consumidos durante o jogo, foi que se não há experiência
inédita neste mundo que não passa da representação de um outro já vivido e mais
elevado, ou se somos guiados oniricamente pelos imperativos poéticos dos quatro
elementos, o que aqueles homens faziam ali então? Divertindo-se? Extravasando
de maneira ludopédica a exploração capitalista? O espólio do álcool no final de
semana? Creio que nada disso, após esta noite a sua tese vai ganhar algo que
não aparecerá em seu currículo Lattes; nos anais de congresso tampouco em sua
banca de defesa. Naquela noite não foi nenhuma República, sombras na caverna ou
inconsciente coletivo que fizeram aqueles homens unirem-se para jogar bola e,
se a vida é tão inevitável quanto a morte, quem faz esta liga é a comunhão seja
na Conselheiro Aguiar ou na areia da praia.
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