Palhares

14.6.15 Unknown 0 Comentarios


      O Palhares olhava para uma foto sua na escola, em preto e branco, de quando pequeno, e pensava que um nome sério e estranho como o seu não combinava com o rosto carinhoso e meigo da criança que via na imagem. O Palhares tinha nome de personagem rodrigueano, e sabia disso, mas o estranhamento só lhe ocorria agora, não quando novo.
     De fato, sempre achou seu nome muito natural, semelhante ao das outras crianças. O que favoreceu isso foi fato de ele ter estudado grande parte da sua vida num colégio militar. Nesta instituição, as crianças eram chamadas pelo último nome, às vezes pelo do meio, nunca pelo primeiro . Ora, pelo último nome ninguém é normal. Assim é que, na infância do Palhares, todo seu círculo de amigos tinham alcunhas que podiam estar facilmente num romance rodrigueano: Da Paz, Cardoso, Bezerra, Nascimento, Assis. Essa fauna taxonômica incomum fazia com que o Palhares se sentisse plenamente integrado, muito bem à vontade, sem um vestígio de diferença.
     A única pessoa que tinha um nome, digamos, mais corriqueiro, era Antônio, o coordenador da escola. Coordenador, em escola militar, é eufemismo para designar aquele sujeito que tem como incumbência vigiar, perseguir, delatar e punir os estudantes. Com funções "pedagógicas" tão inglórias, Antônio só podia angariar a antipatia dos alunos. Com o Palhares, não era diferente, ainda mais porque ele já tinha sido classificado por Antônio como uma criança que tem "problemas com autoridade".
         As relações entre Palhares e Antônio foram estremecendo à medida em que o primeiro se descobria na literatura erótica. Palhares começou com "Trópico de Câncer", de Henry Miller; depois passou para "Bonitinha mas Ordinária - Engraçadinha, seus amores e seu pecados", de Nelson Rodrigues; descobriu a maestria de Sade com "Os 120 Dias de Sodoma". Os livros iam sendo confiscados pelo coordenador Antônio, um a um. O mesmo se sucedeu com "Lolita", de Nabokov, e "Mulheres", de Bukowski. O desentendimento dos dois chegou ao paroxismo quando Antônio flagrou Palhares se masturbando no banheiro da escola; nas mãos, o texto "A História de O", de Anne Desclos. O episódio culminou com a expulsão do Palhares da escola.
       Palhares, no entanto, nunca se distanciou deste gênero de literatura, o seu predileto. Dos mais recentes, gostava muito dos já clássicos "Travessuras de Menina Má", do Vargas Llosa, e de "A Casa dos Budas Ditosos", de João Ubaldo Ribeiro. Tão profunda intimidade com este tipo de leitura, fez de Palhares um potencial escritor, fato que se consumou no seu quinquagésimo aniversário, com o lançamento de um texto que poderia ser descrito como um projeto de vida: "Cartilha da Boa Educação: minetes e felações". O livro narra história de um grupo de estudantes que acha no quintal da escola onde estudavam um "manual" que prescreve como deve se dar o bom relacionamento entre os estudantes, e destes com a sociedade como um todo - justamente, através da prática sexual sem pudores. O personagem principal, Antônio, cativa por viver essas experiências de maneira muito intensa.
        O livro tinha tudo para ser condenado como "literatura de mau gosto", e já estava neste caminho, pela má receptividade que se deu em alguns espaços acadêmicos. Mas tudo mudou quando um crítico renomado saudou a obra como a "reinvenção do erotismo brasileiro", e a colocou dentre os melhores do gênero na literatura universal. A partir daí o campo literário cedeu através de um estranho efeito dominó, e as instituições e eventos literários passaram a conceder inúmeros prêmios e honrarias a Palhares, que andava pelo Brasil a fazer oficinas, conceder entrevistas, dar palestras. Palhares não deixava de se divertir com a aquiescência quase bovina do público literário mais culto, que há seis meses estava prestes a lhe atirar pedras, e agora pedia autógrafos com um sorriso parcimonioso nos dentes.
      Palhares aproveitou o quanto pôde seu momento de intelectual pop. Colecionou uma série de amizades e juntou dinheiro suficiente para um bom tempo de descanso e uma nova empreitada literária. Contudo, o momento mais saboroso desse processo foi a palestra que Palhares deu a estudantes de sua antiga escola militar, que, sempre muito íntima da classe média da sua cidade, acompanhava também seu gostos e modismos. Falou o quanto pôde, divertiu a plateia, deu indicações de literatura e de comportamento, tudo sob o olhar atento do ainda coordenador Antônio. Na hora da foto final, com os pais, estudantes e diretores da escola, não deixou de sentir um gosto de vingança e vitória na boca - escorrendo como um filete de sangue entre as gengivas.




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