Firme no Concreto

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"Puddle" ou "A Poça D'Água" -  Xilogravura de Escher.
   Da abstração à concretude, parece que ao longo da vida, quanto mais se envelhece, mais concretas ficam as ideias, o olhar diante do mundo. Era essa a impressão de Firmino. Do alto dos seus 58 anos, poucas eram as abstrações a que se permitia. Volta e meia, escapulia um pensamento abstrato perdido, ali, vagando sem rumo, em meio à concretude neural das estradas de sua mente. Vias expressas de razão, objetividade e funcionalidade. Essa era sua autoimagem, enxergava a si mesmo desse jeito. Não era algo tão sofisticado assim, a imagem, ipsis litteris, mas fosse como fosse, essa abstração de concretude lhe escapulia. Afinal, como já dito, o espaço ali naquela cabeça era do concreto, sobrava pouco para a abstração.
   Uma vez, quando passava em frente ao supermercado do bairro onde morava, viu um grupo de crianças que "pedia" na saída do estacionamento e de bate pronto procurou à sua volta por um adulto que, de longe, estivesse "no comando", puxando as cordinhas dos moleques, persuadindo-os a fazer aquilo. Sua busca foi em vão. Intrigado e disposto a "investigar o caso" aproximou-se das crianças. Eram quatro, todos aparentavam ter entre oito e dez anos de idade. Pensou consigo, enquanto caminhava naquela direção, "são tão robustos e bem apessoados esses meninos... não podem estar realmente passando por necessidades... estão ali apenas pelo hábito de pedir", decretou. Ao chegar na calçada em que estavam as crianças, indagou-as se elas não tinham casa, por que não estavam na escola e onde estavam seus pais. Não é necessário dizer que, como no dito popular, "como o diabo foge da cruz" os guris deram no pé, rapidinho. Firmino sentiu-se realizado. Havia sido útil para aquelas pessoas que ali faziam suas compras, que trabalhavam arduamente para se suster, e não queriam ser incomodadas. Mas, eis que entra em cena uma abstração que escapuliu ao controle de qualidade concreto de seus pensamentos. A consciência de Firmino estalou. "E se aquelas crianças estivessem ali pedindo porque realmente necessitavam?"... "Eu posso ter sido injusto". 
   O mérito era um dos lemas que regiam a vida de Firmino. Afinal, sua rotina o embruteceu e sua sensibilidade foi se enfraquecendo até ficar na UTI da alteridade, em coma profundo. Mas a Meritocracia, a deusa a quem Firmino venerava, titubeou um segundo. Voltou para casa naquela noite com essa ideia fixa, de procurar os moleques no dia seguinte, para melhor investigar a história e, se estivesse enganado em seu julgamento, tentar se redimir de alguma forma. 
   Já fazia duas semanas e Firmino não havia encontrado os guris em canto algum da vizinhança. E olhe que quando ele botava uma ideia fixa na cabeça, era ruim de nego tirar. Procurou por todas as esquinas e nada. A culpa rodeava os passos de sua busca. Até que depois de muito procurar, desistiu. Decidiu abandonar aquela ideia fixa, pelo menos por ora. Tudo que podia ter feito para encontrá-los ele fez, afinal. Caso o acaso ajudasse, os encontraria por aí. E não é que o destino dele era encontrá-los novamente!? 
   O expediente na obra já estava para se encerrar e Firmino, mestre de obras, era sempre o primeiro a chegar e o último a sair.  "Não dou meu direito a ninguém", pensava quase que "em voz alta". Quando as máquinas foram desligadas e os funcionários foram saindo um a um, até que só sobrasse Firmino, subiu ao sexto piso do prédio inacabado, pelo elevador de obra, travou a alavanca e desceu para verificar se estava tudo em ordem. Fazia isso todos os dias, andar por andar, desligava as luzes, despedia-se do vigilante e ia para casa. Na inspeção do sexto andar, notou que um carrinho de mão estava muito próximo da área limite de segurança e logo foi corrigir a "cagada" de quem deixou aquele carrinho ali, que seria repreendido no dia seguinte. Foi quando ouviu um som do que parecia ser uma criança chorando um choro comedido, quase que imperceptível ao ouvido mais desatento. Achou aquilo no mínimo estranho, mas logo pensou que alguma criança de rua poderia estar aproveitando aquele teto para dormir ali. Ao identificar de onde vinha o som, Firmino jogou o foco de luz no canto de parede que estava na penumbra e antes que pudesse visualizar se havia uma criança ali, um vulto de súbito passa pelo foco de luz. O susto foi tão grande que ele quase cai sentado no chão. "Tem alguém aí?", bravejou irritado. "Olha, guri, você não pode dormir aqui! Se você aparecer, prometo que não conto a ninguém. Só quero que você saia para sua própria segurança". Silêncio. Os únicos sons que se ouvia eram os motores dos carros lá em baixo na rua e suas buzinas nervosas. Novamente Firmino chamou pela criança que pensou ter ouvido chorando escondida e não obteve resposta. Depois de quase meia-hora de busca, ouviu novamente o som e foi se guiando por ele, até chegar bem perto de onde achava que vinha o choro. Foi quando percebeu que não era choro, era um murmúrio, uma música cantada bem baixinho... "vai começar a brincadeira, eu digo um bicho e se ele voar, vocês batem palmas, senão, vocês sorriem apenas... quem errar, paga uma prenda"...

"Pato voa?" (som de palmas)
"Galinha voa?" (risos)
E Firmino agora ouvia claramente crianças cantando, batendo palmas e fazendo uma algazarra daquelas. Mas não conseguia vê-las e assombrado saiu correndo em direção ao elevador. Quando estava quase chegando lá, ouviu uma delas cantarolar "Firmino voa?" e tropeçou no carrinho de mão. 
 
   A queda de seis andares terminou no misturador de cimento de um caminhão estacionado no pátio. Como se diz no basquete, "foi de chuá". 
Firmino caiu no misturador cheio de cimento mole. Ainda permaneceu consciente durante alguns minutos, mas não conseguiu sair, pois havia quebrado a coluna em três lugares. O som do riso das crianças foi ficando cada vez mais longe, mais abstrato, menos audível, até cessar concretamente. 

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