Ressaca: uma ode à longevidade etílica

21.6.15 Unknown 0 Comentarios


"Quem não bebe, não vê o mundo girar! Faça da jaca sua pantufa".
    A luz entrando pelas retinas e cortando como faca afiada, os sons do dia martelando a cabeça como se esta fosse um prego, a dificuldade em raciocinar, a sede eterna, a total indisposição para qualquer coisa que não seja não fazer absolutamente nada. 
   A ressaca é como a quarta-feira de cinzas: ingrata e chega depressa. Receitas para evitá-la não faltam, algumas mais, outras menos eficazes, levando-se em consideração a quantidade de álcool ingerida como o critério para validá-las ou não. Mas, qual seria a melhor forma de evitar a ressaca, senão não beber? Acontece que para muitos de nós não beber não é uma opção. Se metabolizamos o álcool tão bem, por que não fazer uso desse recurso biológico, que está mais para dádiva, que para ferramenta fisiológica?     
   Pois bem, contrariando toda a indisposição, tão cara a essa situação pós-etílica, cá estou, ressacado, a escrever sobre essa implacável contingência do "levantamento de copo". E quem disse que ela é de todo ruim? Aliás, quem diz isso, provavelmente, na noite anterior voltou só para casa. Porque quem tem alguma memória da noite anterior, ainda que ínfima, mas ali nebulosamente intacta, aquela lembrança lasciva... quem tem do que lembrar lidará bem melhor com esses sintomas. É a chamada "ressaca boa". Nem todos têm o privilégio de conhecer a ressaca por essa perspectiva, só um espírito bon vivant é capaz de vê-la com esses olhos... olhos de ressaca, olhos de Capitu. Somente essas almas boêmias são capazes de extrair "o de bom" de uma ressaca. A ressaca é amante ingrata, mas que só manifesta sua ingratidão no pós-coito. Que assim seja! O "pós" já diz muito do sorriso, mesmo que mirrado, que irá estampar o rosto de quem tem o que lembrar da noite passada. Há os que juram diante da cruz, "jamais beberei novamente", que tem verdadeira fobia de ficar outra vez de ressaca, que tentam evitá-la a todo custo, fazendo uso daquelas receitas que já mencionei ali no começo dessa prosa. E tem quem a aceite "de coração", quem compreenda o princípio da inevitabilidade inerente ao day after
   Mas, afinal, quão não seria incompleta, opaca e sem graça a experiência de beber, se nunca ficássemos de ressaca? A ressaca nos torna longevos na arte da bebedeira, sem ela, o que garantiria a nossa longevidade etílica? Em outras palavras, por que beberíamos com certa frequência, até a velhice, se não houvesse qualquer consequência? Que graça isso teria? A ressaca nos lembra que somos mortais, finitos, que devemos aproveitar a dádiva de sermos capazes de metabolizar o álcool, com certa parcimônia, "enfiar o pé na jaca", mas dar o tempo necessário para que o organismo se recupere para a próxima empreitada etílica. Sem ela, beber seria apenas um ato banal, desprovido de seus significados culturais: o ethos ritualístico de quem se confraterniza com o outro, de quem afoga suas mágoas, que chora a perda de um grande amor e curte a dor de cotovelo. Sem a ressaca, todos nós seríamos Baco e Dionísio

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