Matando o tempo I
Sabe
aqueles dias que você acorda prostrado? Aqueles que você diz
entrementes: “O que porra estou fazendo aqui?”. O banho, mecânico. O trabalho,
mecânico. A boca não distingue o feijão do arroz à hora do almoço. E o dia, em
seus estertores, demora a morrer – num arrebol tediosamente moribundo.
Uma
apatia de aço envolve seu ânimo. Não vale a pena investir numa cantada. As
mulheres são estranhas porque sua autoestima está um grau acima da de Bartleby
– o incorruptível escrivão de Herman Melville.
Pois
é, esse foi o estado das coisas em que me encontrei hoje.
Voltei
para casa, uma pilha de pratos do tamanho do meu tédio esperava-me, sorrindo
com seus dentes de vidro e alumínio.
Para
o tédio, dedicação e disciplina. Isto é, são os torniquetes que estancam a
dissolução pela apatia.
Mãos
à obra.
A
mecânica dos gestos, paradoxalmente, é o antídoto perfeito para a rotina
acachapante da vida pequeno-burguesa.
Sabão
na esponja de pratos (fim de mês não é para detergentes, apenas os fortes
sobrevivem) e na mimese aprendida com minha mãe: copo com copo, talher com
talher, prato com prato, panela com panela, sem acumular nada na pia. Ensaboou,
enxague.
A
técnica é o oxigênio da rotina.
Aos
poucos, os resíduos desciam pelo ralo – esse "olho" assustador como nos ensinou Alfred
Hitchcock. Lá estavam: restos de suco de beterraba, sementes de laranja,
frigideira com marcas de ovos mexidos, pratos encrostados por leves camadas de
feijão com farinha, panela com arroz queimado ao fundo.
Lentamente,
a louça soltava os resíduos de alimento através dos seus “poros” de vidro e
alumínio, em virtude do repetitivo movimento do meu braço direito – esponja,
sabão, movimentos circulares e água – não há sujeira, nem tédio que suporte.
Em
sentido horário, a água descia pela tubulação levando os resíduos de alimento
misturados à glicerina do sabão e à apática miséria do cotidiano.
Enquanto a água escorria da esquerda para a direita – invariavelmente
abaixo do Equador –, eu joguei o tampão de inox da pia sobre a água.
Paulatinamente, o objeto seguiu o transcurso da água, descrevendo círculos cada
vez mais concêntricos à medida que a água reduzia seu volume na pia.
Por fim, o tampão encaixou-se perfeitamente em seu orifício na elegância de quem põe a peça num xeque-mate.
Por fim, o tampão encaixou-se perfeitamente em seu orifício na elegância de quem põe a peça num xeque-mate.
Foi
uma das coisas mais bonitas que vi na vida.
0 comentários: