Matando o tempo I

11.6.15 Cabotino 0 Comentarios


Sabe aqueles dias que você acorda prostrado? Aqueles que você diz entrementes: “O que porra estou fazendo aqui?”. O banho, mecânico. O trabalho, mecânico. A boca não distingue o feijão do arroz à hora do almoço. E o dia, em seus estertores, demora a morrer – num arrebol tediosamente moribundo.

Uma apatia de aço envolve seu ânimo. Não vale a pena investir numa cantada. As mulheres são estranhas porque sua autoestima está um grau acima da de Bartleby – o incorruptível escrivão de Herman Melville. 

Pois é, esse foi o estado das coisas em que me encontrei hoje.

Voltei para casa, uma pilha de pratos do tamanho do meu tédio esperava-me, sorrindo com seus dentes de vidro e alumínio.

Para o tédio, dedicação e disciplina. Isto é, são os torniquetes que estancam a dissolução pela apatia. 

Mãos à obra.

A mecânica dos gestos, paradoxalmente, é o antídoto perfeito para a rotina acachapante da vida pequeno-burguesa.
Sabão na esponja de pratos (fim de mês não é para detergentes, apenas os fortes sobrevivem) e na mimese aprendida com minha mãe: copo com copo, talher com talher, prato com prato, panela com panela, sem acumular nada na pia. Ensaboou, enxague.

A técnica é o oxigênio da rotina.

Aos poucos, os resíduos desciam pelo ralo – esse "olho" assustador como nos ensinou Alfred Hitchcock. Lá estavam: restos de suco de beterraba, sementes de laranja, frigideira com marcas de ovos mexidos, pratos encrostados por leves camadas de feijão com farinha, panela com arroz queimado ao fundo. 

Lentamente, a louça soltava os resíduos de alimento através dos seus “poros” de vidro e alumínio, em virtude do repetitivo movimento do meu braço direito – esponja, sabão, movimentos circulares e água –  não há sujeira, nem tédio que suporte.

Em sentido horário, a água descia pela tubulação levando os resíduos de alimento misturados à glicerina do sabão e à apática miséria do cotidiano.

Enquanto a água escorria da esquerda para a direita – invariavelmente abaixo do Equador –, eu joguei o tampão de inox da pia sobre a água. Paulatinamente, o objeto seguiu o transcurso da água, descrevendo círculos cada vez mais concêntricos à medida que a água reduzia seu volume na pia. 

Por fim, o tampão encaixou-se perfeitamente em seu orifício na elegância de quem põe a peça num xeque-mate. 

Foi uma das coisas mais bonitas que vi na vida.

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