O caso Pirilópolis

14.6.15 Unknown 0 Comentarios


   Enredo clássico: um herói, o mocinho que vai ao salvamento da donzela em perigo, resgatá-la das garras do vilão maléfico. O casal do fim da história é o ideal de beleza e bondade encarnado, enquanto que o vilão, recém-derrotado, caído no chão, é a mais pura representação da maldade encarnada. Esteriótipos e maniqueísmos. Não pense você que esse enredo caiu no desuso, por não contemplar mais os anseios da ávida e calorosa plateia. Muda-se um tantinho aqui e acolá a história, mas é apenas variação sobre o mesmo tema... e como parece inesgotável! Oscar Wilde disse certa vez - ou pelo menos a frase é atribuída a ele - "a arte não deveria ser popular, o povo é que deveria ser artístico". Não sei se concordo totalmente com o sr. Wilde, mas tendo a eventualmente pender para o seu lado, nesse quesito. Bom, depois desse prólogo e antes que eu entre no eterno debate do "papel da arte" - se é que ela tem um papel -, pois, meu cadáver começaria a se decompor, não sobrariam nem os ossos pra contar a história e ainda assim, o tema não se esgotaria... antes disso, vamos ao causo de hoje. E de antemão vos aviso, a nossa história não se parece em nada com essas de que falei ali.
O "herói" da nossa história chama-se Ubaldo e mal sabia ele que sua vida estava prestes a guinar por completo.

"Viagem à Lua" do diretor George Méliè.
   Pirilópolis era uma cidadezinha, dessas típicas dos folhetins e telenovelas, onde a moral prevaricava apenas no apagar das luzes, quando ninguém estava olhando, como se diz. Sua rotina era de entediar os entediados, o tempo era quase cíclico e não havia maior evento que a tradicional quermesse de domingo, salvo exceção, quando baixava por aquelas bandas um circo "tomara que não chova", com um parquinho de diversões a tiracolo, de brinde. Pois, bem. Ubaldo nascera e crescera em Pirilópolis e de lá nunca tinha saído. Quando criança sonhava em ser astronauta, depois que viu na única tv que ficava na praça principal da cidade, a chegada do homem à lua. Era o fã número um da cidade do seriado Jornada nas Estrelas. Toda terça, no fim da tarde, estava lá de plantão, em frente a tv, aguardando pelo mais recente episódio. Na escola e nas andanças pelos descampados da região, brincava de viajante do espaço e sempre "era" o Capitão Kirk. As parcas revistas de entretenimento, que chegavam à única banca da cidade, sempre passavam por seu olho ávido e explorador, desbravador, à procura de alguma menção ao seriado, ou fotos de KirkSpokDr. McCoy ou da Tenente Uhura. Ah! A Tenente Uhura... sua face ruborizava só de pensar na Tenente, em seu terninho da frota estelar...
   Ubaldo foi um aluno aplicado, sempre o primeiro da turma, afinal, sonhava em pilotar os ônibus espaciais da NASA e se não se esforçasse bastante, não passaria nem da cancela da entrada da cidade. Mas, o caso é que antes mesmo de concluir o antigo primário, Ubaldo precisou trabalhar para ajudar seus pais. Era o filho mais velho de nove irmãos e acabou descobrindo da pior maneira que este seria seu fardo para o resto da vida. Seu pai faleceu quando tinha 16 anos e sua mãe já não enxergava direito por causa da catarata. Assumiu desde então a condição de provedor do lar. Trabalhou como empacotador e carregador, a princípio, na mercearia de Seu João Biriba e praticamente tudo que ganhava entrava em casa, sobrando pouco ou quase nada para si mesmo. Após três anos chegou a gerente da mercearia, mas a proporção do seu salário que ia para o sustento da casa, continuou a mesma: quase tudo para a casa, quase nada para Ubaldo. Josinaldo, Plínio, Ronaldo e Bartira, os mais velhos depois de Ubaldo, respectivamente nessa ordem, também trabalhavam, mas o que ganhavam, mesmo juntado tudo, chagava só à metade do que Ubaldo ganhava na mercearia. Portanto, o "grosso" do sustento da casa sempre veio de Ubaldo. Os outros quatro irmãos mais novos dependiam totalmente daquela renda para comer e vestir. 
Mas Ubaldo não encarava sua condição como um fardo, ainda que fosse assim. Orgulhava-se de poder cuidar de sua família, entendia aquilo como uma herança de seu pai. E foi levando a vida... e o sonho de explorar o espaço foi ficando cada vez mais distante. Já não ia mais às terças na praça, assistir a Jornada nas Estrelas. Que triste fim para Ubaldo, não!?
Mas não, o nosso causo não acaba aqui, assim dessa maneira.
   
   Ubaldo já estava com seus trinta e tantos e nunca tinha casado, viajado para a capital, tido um relacionamento que durasse mais de um ano, nem sequer chegou a sair de Pirilópolis, consequentemente, não se tornara astronauta. Continuava como gerente da mercearia de Seu João Biriba e cuidando da educação dos irmãos mais novos, que agora estudavam, sete deles, na capital. Ubaldo mandava o dinheiro para ajudá-los nas despesas, mas todos trabalhavam de "boys" em escritórios, com exceção de Bartira. Essa tornara-se gerente executiva de um grande banco da região e viajava o país inteiro, representando a instituição. Ela ajudava nas despesas com os outros irmãos e Dona Teresa, que já estava velhinha e praticamente cega, dependia completamente de Ubaldo, que assumira também a função de pai de sua mãe. A ajuda de Bartira se resumia a mandar o dinheiro no fim do mês. Apesar do rumo que sua vida tomou, distante da sonhada exploração do espaço, Ubaldo sentia-se feliz ao lado de sua mãe, em Pirilópolis. 
   Uma noite dessas, no final do expediente, finda a contabilidade do apurado do dia, Ubaldo fechou a mercearia como sempre fazia, passou na padaria, comprou os pães para a janta e rumou para casa. Aquela noite estava especialmente estrelada e vieram à sua mente as memórias dos episódios de Jornada nas Estrelas. Aquela vez em que Spok, apesar de ser um vulcano (raça alienígena extremamente racional), tradicionalmente frio e não afeito aos sentimentos humanos, demonstrou imensa humanidade; aquela outra vez em que a Tenente Uhura fora protagonista do episódio da semana, deixando Ubaldo tão ruborizado ao vê-la por tanto tempo na tela, que suas bochechas mais pareciam duas pimentas malaguetas; e teve aquela vez em que pensava-se que o Capitão Kirk havia morrido, mas ele reaparece no fim da história com um plano engenhoso, explicando como forjara sua morte. Enquanto estava caminhando pelos descampados, olhando para as estrelas e perdido em seus pensamentos, de repente, cruza os céus um feixe de luz tão intenso que chegou a cegar Ubaldo por alguns segundos. Ao recuperar a visão, Ubaldo sente o estrondo. Algo havia caído do céu e caiu em Pirilópolis e estava bem à sua frente, a cerca de cem metros, para ser mais preciso. 

"Já chegou o disco voador" - Chaves
se referindo a 
Seu Barriga.
  Apesar de estar assustado, na verdade, quase terrificado de susto, Ubaldo não conseguiu conter a curiosidade e aproximou-se do local da queda do objeto, lentamente. Ao chegar na margem da enorme cratera que se formara no chão com a queda do objeto, viu que não se tratava de um asteroide, parecia-se mais com um satélite. No local da queda, na cratera que se formara, a temperatura estava alta, inclusive a areia no chão estava quente como areia da praia ao meio-dia. Ubaldo desceu pela ribanceira da cratera, com cuidado para não encostar em algum pedaço em brasa que se partiu do objeto durante a queda. Quando chegou bem perto, e já era possível visualizar melhor de que se tratava, percebeu que não parecia com nenhum satélite que já tinha visto nas revistas, livros ou na tv. Seu coração palpitava a ponto de quase sair pela boca, mas não conteve o ímpeto: pegou seu casaco, enrolou na mão para não se queimar, e tentou abrir o objeto, pensando ser tratar de uma nave espacial e que seria o primeiro habitante de Pirilópolis a fazer contato com vida extraterrestre. Tentou com todas as suas forças abrir o que pensava ser a "cápsula" donde sairia um ser verdinho à espreita. Não obteve sucesso nas primeiras tentativas. Até que quando já estava para desistir e ir atrás de um pé de cabra em casa, para abrir a "nave" ouviu um estalo. Em seguida, um vapor quente saiu do objeto, no que Ubaldo afastou-se num sem-pulo, assustado. A "cápsula" se abriu e um vórtice de ar tragou Ubaldo para dentro. 
   Até hoje não se tem notícia de Ubaldo. O caso foi abafado pelas autoridades locais e pelas nem tão locais assim e se o tal objeto não identificado foi confiscado, levado para alguma base do exército, ou se nunca foi encontrado, ninguém sabe ao certo. O que se sabe é que o objeto não identificado que caíra dos céus em Pirilópolis, continuou assim, não identificado. Relatos de pessoas que viram o clarão e algo caindo, deixando um rastro de luz no céu, se multiplicaram aos montes. Logo, os boatos sobre uma possível abdução de Ubaldo, ou que ele teria aproveitado o caso para fugir da vida que levava em Pirilópolis, também se espalharam e, inevitavelmente, acabaram chegando aos ouvidos da inconsolável Dona Teresa. 
   Para surpresa de todos, quando ninguém mais esperava, um fato novo acabou por chamar mais a atenção dos moradores de Pirilópolis que o misterioso desaparecimento de Ubaldo. Uma semana após o ocorrido, Dona Teresa voltou miraculosamente a enxergar e estava completamente curada da catarata, mas em compensação, nunca mais disse uma palavra. Dona Teresa agora passa as noites olhando para o céu estrelado de Pirilópolis, da sacada de sua janela, na esperança que um dia seu filho volte para lhe buscar.

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