Memória futebolística: breve história de W.

19.9.14 Unknown 0 Comentarios


Não faz muito tempo e nós, os meninos aqui de baixo, éramos as companhias preferidas dos caras lá de cima para jogar futebol. Contra, é claro. Imperava entre os residentes do sopé e do alto do morro uma rivalidade profunda, secular, e eu diria mesmo inata. A rixa nossa era um exemplar de menor alcance de um Brasil x Argentina, um Santa Cruz x Sport, um Campinense x Treze, etc. E W., nosso goleiro, tinha, digamos, um pendor para a discórdia, a contenda, a desavença - e, às vezes, para a pancadaria; mas só às vezes, sejamos justos. Não era uma coisa deliberada, fazia parte dele, se confundia com ele; eu diria que era um estado
Thomaz Farkas
de espírito. No geral, era W. quem dava o estopim para o tumulto, para o famigerado buruçú. Mas deixemos de lado suas marcas pessoais e passemos às suas características futebolísticas. Grande goleiro, não na estatura, mas no desempenho debaixo meta. Boa impulsão, saía bem na bola e era decisivo em momentos decisivos - perdoem a tautologia. Contudo, era acometido, de quando em quando, por um problema que ataca até arqueiros profissionais: a irregularidade. Ía do genial ao patético em questão de dias; pegava um pênalti hoje e amanhã tomava um frango inexplicável. E vivia assim, a não ser que... A não ser que tivesse alguma enfermidade! Sempre que estava com uma luxação na virilha, uma distensão no ombro ou um dedo quebrado, era imbatível. Para um furar um gol nele, como se diz no bom linguajar ludopédico, era um problema. Parecia que queria provar a todos do que era capaz. De forma que quando nós, do time de baixo, sabíamos que W. carregava alguma moléstia leve, entrávamos em campo com a inabalável convicção da vitória. Não só porque ele iria fechar a meta de qualquer maneira, isso já era uma certeza mais forte que a lei da gravidade, mas também pelo fator motivacional: se já é errado deixar o adversário chutar a gol em partida normal, imagina com o goleiro enfermo? Era quase um pecado! Aí, meu velho, ah-ham, pigarreio para falar: o pau cantava. E tome se jogar na frente da bola, dar carrinho, puxar a camisa, ou passar o rodo propriamente dito quando nos faltava outro recurso. E quando alguma bola atravessava nosso bloqueio, tava lá nosso paredão pra segurar onda. Diante de tamanha sintonia, já corria em boca miúda a estratégia de provocar nele sempre alguma pequena avaria, para que dessa forma ele alcançasse a desejada constância. Tão ardilosa operação, no entanto, encontrou seu insucesso numa partida chuvosa do mês de julho em que nós tomávamos um vareio de bola com direito a uma diferença de três tentos no placar. Vendo o nosso arqueiro quase deixar a bolha molhada escapulir por entre suas mãos para dentro do gol, nosso zagueiro grita não de muito longe: "Sigura essa porra, disgraça! tu num tás com o pé fudido?!" Ao passo que W. responde de pronto com um sonoro e decepcionante "Já tô sarado!". Ouviu-se um "uuhhh" de desapontamento vindo do nosso banco de reservas, algumas trocas de acusações, um início de bate boca, responsabilizações mútas, etc. Mas o fato estava exposto: o pé esquerdo enfaixado enganava só a nós, jogadores de linha, e apenas sob nós tinha o efeito psicológico instigador. Ele, W., tinha plena ciência de seu bem-estar físico, fruto de uma recuperação que aconteceu em tempo recorde através de um chá especial que sua irmã lhe ministrou. Estando, portanto, no seu normal: uma eterna oscilação entre bons e maus momentos, até dentro de uma mesma partida. Daí que frustado por não poder nos ajudar mais do que já ajudava, aproveitou um tiro de meta e arremessou a bola na cara do atacante adversário e já partiu para quebrar o beque deles, que estava de costas, bebendo água, pondo em prática (e nós também, porque não amigo separa: chega na voadora) o seu mais velho e conhecido mantra: perco na bola, mas não perco no pau!

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