Antípodas
- O artista, talvez, enquanto cidadão, mas sua arte
deve responder à sua própria demanda. Ou seja: deve atender às contingencias
que se exigem dela. No caso da literatura, por exemplo, o seu promotor é a
palavra escrita. O berro de protesto do escritor deve ser a literatura séria.
Engajada consigo mesma. O protesto que o escritor deve emitir para a sociedade
é desvendar às especificidades. Pois, a política é sua antípoda, sua rival. Daí
você pode me perguntar por quê? Respondo: a política cuida dos temas da polis,
da cidade. Em uma palavra, ela trata das generalidades e está cagando e andando
para às nuances. Alguns prosélitos da política afirmam que a literatura é um
drama burguês e o escritor é perturbado por escrúpulos metafísicos. E o que
importa é a luta de classes. A causa do trabalhador em um sistema cuja produção
capitalista espolia cada vez mais os salários e as condições de trabalho, ou os
meios de reprodução da vida como diz os acólitos do marxismo. Daí eu lhe digo o
que importa para os trabalhadores, o que está em sua utopia: é botar mais um
Volkswagen na rua e encher o bucho de carne em rodízios com chopes “compre um e
leve outro”, por exemplo. Por isso o escritor deve-se ater ao seu domínio, a
palavra.
- Mas, não entendi bem quando você referiu-se às
especificidades. Explique-me melhor essa característica da literatura.
- Ora, como falei há pouco, para entender às
especificidades é preciso fazer um exercício de cotejo, de comparação. Quando
falei que o “reino” da política é a generalidade, o monos, criação de leis
gerais a partir de políticas públicas para atender às demandas da polis. Queria
dizer com isso que a política, por suas próprias exigências – coletivas –
esquece o indivíduo em seu drama solitário, em sua ubiquidade dramática no
mundo. Desde que a política constitui-se enquanto narrativa histórica, ou seja,
quando entrou no Tempo e começou a colonizar o futuro através de um telos, uma
finalidade para às demandas coletivas, ela esqueceu das nuances. O que isso
quer dizer? A literatura é inimiga da política por querer tratar de temas que
são avessos a esta. Desde tempos imemoriais, a personagem literária, mesmo em
ações coletivas, busca sua finalidade. O que Odisseu queria? Voltar para casa
mesmo que à revelia dos Deuses. Dom Quixote? Criou um mundo maior do que o que
lhe circunscrevia e saiu errante pregando sua justiça em um mundo já caduco
para os princípios da cavalaria andante. Raskolnikov e Julien Sorel? Um
bonapartismo particular, Etcetera. E o que aconteceu com os argonautas e os deuses?
O que aconteceu com o século de ouro espanhol? Ou que ficou das senhoras
assassinadas pelo anti-herói dostoievskiano e com a cabeça do personagem de
Stendhal? Respondo: todos eles passaram, o que sobreviveu em meio a esse grande
documento de barbárie que é a história do Ocidente, foi o drama ampliado do ser
humano – suas nuances em um mundo cada vez mais massificado pelo telos da
política.
- Então quer dizer que a política sempre fez pouco
caso com a literatura? Há pouco você falou do marxismo, então quer dizer que
dentre as várias manifestações da política, o marxismo seria o mais contrário à
literatura?
- A política não só fez pouco caso como criou
mecanismos para acabar com a literatura séria, aquela comprometida consigo
mesma. Nos Estados totalitários, a partir da censura oficial. Nos Estados
capitalistas, através da censura mercadológica. O que sobrevive, em grande
medida, nestes dois exemplos: é a literatura propagandista ou a literatura água
com açúcar, respectivamente. Não quero dizer com isso que as condições de
trabalho para um escritor em um exemplo e no outro sejam iguais. Evidentemente,
na democracia fashion em que vivemos, essa daí tão propalada por Washington
mundo afora, o artista e o escritor pode utilizar-se do mecanismo do cinismo.
Ou seja, garantir seus meios de sobrevivência, em áreas de atuação muitas vezes
distante daquilo que produz, e lançar-se em uma produção mais radicalizada
pois, tem relativa liberdade de expressão. Mas, há um imbróglio que às vezes
lhe condena ao opróbrio dentro da convenção do meio simbólico que atua, seja
ele a imprensa – alternativa ou não –; as universidades – mais as privadas do
que as estatais –; o mercado editorial etc., pois o seu nível de radicalidade
ou nuance está o tempo todo sendo vigiado pela patrulha ideológica do bom senso
ou do bom tom das convenções liberais, burguesas. Para contornar esta situação,
o artista precisa radicalizar cada vez mais seu ofício e, no caso do escritor,
enfatizar à palavra, haja vista, toda patrulha ideológica é idiota, tanto nos
regimes totalitários quanto nos democráticos. Pois a patrulha está interessada
na ordem, no bom funcionamento das instituições e é totalmente inepta à
dinâmica das nuances que o artista imprime em sua obra. A história está repleta
com exemplos de artistas que conseguiram furar esse bloqueio ideológico, porém
muitos deles só foram recepcionados tempos depois e viveram à míngua ou
morreram por conta de sua voz, de suas especificidades.
- Mas, você ainda não falou da relação do marxismo com
a literatura.
- Vou tentar ser mais claro. Não só o marxismo como
todo o espectro político não se permitem compreender o humano em suas nuances.
Se estes falam de drama burguês ou pequeno burguês. Os liberais falam em perca
de tempo só para ser eufemístico. Fazem políticas públicas para à cultura só
porque é uma exigência constitucional. Tá lá nos artigos 215 e 216 que todo
brasileiro tem o direito de produzir e usufruir da cultura nacional. Mas, daí
lhe pergunto? Cadê a recepção, a fruição do nosso espólio cultural e o acesso à
nossa produção hodierna, atual? Parece que a cultura brasileira virou alguma
coisa para turista inglês ver, enquanto o grosso da população usufrui
containers oriundos de Hollywood ou do Projac, engolindo enlatados sem
mastigar. Por fim, a literatura não está presente apenas no Manifesto do
Partido Comunista. Ela também está fora do Genesis. Do acordo de Breton-Woods.
Do New Deal. Do PAC, Etcetera. O escritor é o herói que não está no gibi
tampouco na natureza como as placas tectônicas ou as borboletas. Deus fez o
mundo em sete dias e não disse “haja literatura”; Marx não disse “literatura do
tudo o mundo, uni-vos!”; Mantega não disse “vamos aumentar meio por cento na
taxa da literatura”. Todos eles estão preocupados com as generalidades. "E a
literatura", perguntamos aos administradores do mundo? E eles responderão “por
favor, sem nuances, grato”. Por isso, meu caro, vamos criar, vamos escrever,
mesmo que o verbo seja transitivo e peça complemento.
***
Foto: Performance do multi-artista pernambucano, Paulo Bruscky nas ruas do Recife, em 1978. Disponível em:
http://paulobruscky.com/2013/03/19/o-que-e-a-arte-para-que-serve/
Acesso em: 14 de set. 2014.
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