Antípodas

14.9.14 Cabotino 0 Comentarios



- “Todo artista tem que ir onde o povo está”, como diz a canção?

- O artista, talvez, enquanto cidadão, mas sua arte deve responder à sua própria demanda. Ou seja: deve atender às contingencias que se exigem dela. No caso da literatura, por exemplo, o seu promotor é a palavra escrita. O berro de protesto do escritor deve ser a literatura séria. Engajada consigo mesma. O protesto que o escritor deve emitir para a sociedade é desvendar às especificidades. Pois, a política é sua antípoda, sua rival. Daí você pode me perguntar por quê? Respondo: a política cuida dos temas da polis, da cidade. Em uma palavra, ela trata das generalidades e está cagando e andando para às nuances. Alguns prosélitos da política afirmam que a literatura é um drama burguês e o escritor é perturbado por escrúpulos metafísicos. E o que importa é a luta de classes. A causa do trabalhador em um sistema cuja produção capitalista espolia cada vez mais os salários e as condições de trabalho, ou os meios de reprodução da vida como diz os acólitos do marxismo. Daí eu lhe digo o que importa para os trabalhadores, o que está em sua utopia: é botar mais um Volkswagen na rua e encher o bucho de carne em rodízios com chopes “compre um e leve outro”, por exemplo. Por isso o escritor deve-se ater ao seu domínio, a palavra.

- Mas, não entendi bem quando você referiu-se às especificidades. Explique-me melhor essa característica da literatura.

- Ora, como falei há pouco, para entender às especificidades é preciso fazer um exercício de cotejo, de comparação. Quando falei que o “reino” da política é a generalidade, o monos, criação de leis gerais a partir de políticas públicas para atender às demandas da polis. Queria dizer com isso que a política, por suas próprias exigências – coletivas – esquece o indivíduo em seu drama solitário, em sua ubiquidade dramática no mundo. Desde que a política constitui-se enquanto narrativa histórica, ou seja, quando entrou no Tempo e começou a colonizar o futuro através de um telos, uma finalidade para às demandas coletivas, ela esqueceu das nuances. O que isso quer dizer? A literatura é inimiga da política por querer tratar de temas que são avessos a esta. Desde tempos imemoriais, a personagem literária, mesmo em ações coletivas, busca sua finalidade. O que Odisseu queria? Voltar para casa mesmo que à revelia dos Deuses. Dom Quixote? Criou um mundo maior do que o que lhe circunscrevia e saiu errante pregando sua justiça em um mundo já caduco para os princípios da cavalaria andante. Raskolnikov e Julien Sorel? Um bonapartismo particular, Etcetera. E o que aconteceu com os argonautas e os deuses? O que aconteceu com o século de ouro espanhol? Ou que ficou das senhoras assassinadas pelo anti-herói dostoievskiano e com a cabeça do personagem de Stendhal? Respondo: todos eles passaram, o que sobreviveu em meio a esse grande documento de barbárie que é a história do Ocidente, foi o drama ampliado do ser humano – suas nuances em um mundo cada vez mais massificado pelo telos da política.

- Então quer dizer que a política sempre fez pouco caso com a literatura? Há pouco você falou do marxismo, então quer dizer que dentre as várias manifestações da política, o marxismo seria o mais contrário à literatura?

- A política não só fez pouco caso como criou mecanismos para acabar com a literatura séria, aquela comprometida consigo mesma. Nos Estados totalitários, a partir da censura oficial. Nos Estados capitalistas, através da censura mercadológica. O que sobrevive, em grande medida, nestes dois exemplos: é a literatura propagandista ou a literatura água com açúcar, respectivamente. Não quero dizer com isso que as condições de trabalho para um escritor em um exemplo e no outro sejam iguais. Evidentemente, na democracia fashion em que vivemos, essa daí tão propalada por Washington mundo afora, o artista e o escritor pode utilizar-se do mecanismo do cinismo. Ou seja, garantir seus meios de sobrevivência, em áreas de atuação muitas vezes distante daquilo que produz, e lançar-se em uma produção mais radicalizada pois, tem relativa liberdade de expressão. Mas, há um imbróglio que às vezes lhe condena ao opróbrio dentro da convenção do meio simbólico que atua, seja ele a imprensa – alternativa ou não –; as universidades – mais as privadas do que as estatais –; o mercado editorial etc., pois o seu nível de radicalidade ou nuance está o tempo todo sendo vigiado pela patrulha ideológica do bom senso ou do bom tom das convenções liberais, burguesas. Para contornar esta situação, o artista precisa radicalizar cada vez mais seu ofício e, no caso do escritor, enfatizar à palavra, haja vista, toda patrulha ideológica é idiota, tanto nos regimes totalitários quanto nos democráticos. Pois a patrulha está interessada na ordem, no bom funcionamento das instituições e é totalmente inepta à dinâmica das nuances que o artista imprime em sua obra. A história está repleta com exemplos de artistas que conseguiram furar esse bloqueio ideológico, porém muitos deles só foram recepcionados tempos depois e viveram à míngua ou morreram por conta de sua voz, de suas especificidades.

- Mas, você ainda não falou da relação do marxismo com a literatura.

- Vou tentar ser mais claro. Não só o marxismo como todo o espectro político não se permitem compreender o humano em suas nuances. Se estes falam de drama burguês ou pequeno burguês. Os liberais falam em perca de tempo só para ser eufemístico. Fazem políticas públicas para à cultura só porque é uma exigência constitucional. Tá lá nos artigos 215 e 216 que todo brasileiro tem o direito de produzir e usufruir da cultura nacional. Mas, daí lhe pergunto? Cadê a recepção, a fruição do nosso espólio cultural e o acesso à nossa produção hodierna, atual? Parece que a cultura brasileira virou alguma coisa para turista inglês ver, enquanto o grosso da população usufrui containers oriundos de Hollywood ou do Projac, engolindo enlatados sem mastigar. Por fim, a literatura não está presente apenas no Manifesto do Partido Comunista. Ela também está fora do Genesis. Do acordo de Breton-Woods. Do New Deal. Do PAC, Etcetera. O escritor é o herói que não está no gibi tampouco na natureza como as placas tectônicas ou as borboletas. Deus fez o mundo em sete dias e não disse “haja literatura”; Marx não disse “literatura do tudo o mundo, uni-vos!”; Mantega não disse “vamos aumentar meio por cento na taxa da literatura”. Todos eles estão preocupados com as generalidades. "E a literatura", perguntamos aos administradores do mundo? E eles responderão “por favor, sem nuances, grato”. Por isso, meu caro, vamos criar, vamos escrever, mesmo que o verbo seja transitivo e peça complemento.

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Foto: Performance do multi-artista pernambucano, Paulo Bruscky nas ruas do Recife, em 1978. Disponível em:
http://paulobruscky.com/2013/03/19/o-que-e-a-arte-para-que-serve/  
Acesso em: 14 de set. 2014.

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