Boleiro bom...
O motivo de aquela pelada batida com muito afinco nas matas do
Uchôa pertencentes à União ter-se acabado, ninguém sabia responder. Eu, por meu
turno, sabia que papai tinha deixado de ir por causa do trabalho, ou dos filhos,
ou de uma outra desculpa plausível que eu já vi ele usando umas vezes, sempre
que as duas primeiras estavam já gastas, mas que não me vem à cabeça agora.
Do resto, não sei. E todo mundo era reticente e evasivo quando
eu perguntava, o pessoal ficava sem jeito; parecia que estavam falando de uma
pessoa querida que tinha partido, tamanha era comoção que lhes tomavam o rosto.
Melhor, então, deixar quieto, não cutucar a ferida.
De qualquer forma, e era aqui onde eu queria chegar, um
rapaz que acabou virando genro de um dos fundadores da referida pelada, e que
chegou a participar ativamente dela, sempre que me via se dirigia a mim já
cambaleante por causa do álcool, balançava positivamente o dedo indicador e
perguntava:
- Tu é filho daquele bicho, né não?, que batia pelada com a
gente?
Donde “aquele bicho”, já sabíamos eu e ele - através de
alguma linguagem telepática, ou talvez o esperanto - era o meu pai, cuja fisionomia muito se
assemelhava à minha. Aliás, a minha se assemelhava à dele, para ser mais
preciso.
A primeira vez, há alguns anos, que essa cena aconteceu, eu
passei por uns momentos de tensão. Vi um rapaz forte, levemente embriagado,
caminhando em minha direção com um olhar direto, inquisitivo, e o tal dedo
indicador pululando no ar. Meu Deus, será que eu fiz algo de errado, mexi com
mulher comprometida?
Os instantes de agonia passaram logo que a pergunta foi
lançada ao ar.
Pergunta essa que, pasmem ou não, foi repetida várias vezes.
Era incrível a falta de memória do sujeito, o que impedia que a nossa relação
ganhasse profundidade. Todas as vezes que ele me via, era como se fosse a
primeira era vez que isso estivesse acontecendo, e lá vinha, o dedo indicador,
a pergunta, etc etc etc.
Teve uma época, acreditem ou não, que nem precisava mais que
ele verbalizasse nada. Eu ficava cá esperto, no meu canto, na minha mesinha com
a minha cerveja, e espiava o momento em que ele, de lá, tomava atitude de se
levantar para vir até mim. Na mesma hora eu me colocava de pé, olhava para ele
sorrindo, com o braço levantado e o sinal afirmativo no polegar direito.
Pronto, a comunicação já tinha fluído. Ele, satisfeito, já compreendia que,
sim, eu era filho daquele bicho, e voltava a se sentar com um sorriso jovial no rosto, todos os dentes à mostra.
Tal oportunidade eu já não tive um mês atrás, quando fui
pego de surpresa: ele chegou de sopetão, e, como de praxe, me fez o tal
questionamento. Eu respondi afirmativamente que sim, e com muito bom humor lhe
fiz outra pergunta:
- Agora me diz aí, qual a posição que ele jogava?
Se eu soubesse a consequência dessas palavras, jamais as
teria proferido. O rapaz ficou branco, começou suar, a olhar para os lados, a
respirar fundo e rápido, tudo porque, meu deus, ele não sabia: a memória o tinha
traído justo neste momento crucial. Se saiu rapidamente das botadas, foi no
banheiro, e voltou. Ainda assim, sem a resposta. Foi sincero:
- Rapaz, uma hora dessa, eu já cheio de "mé", uma pergunta
dessa... Lembro a posição não, mas lembro que jogava muito. Boleiro bom a gente
nunca esquece.
Saiu ainda meio desconcertado, pensando que a falta de resposta
indicaria que ele não conhecia meu pai de outros babas. Por mais que eu me
esforçasse para não deixar essa impressão, foi inevitável o desacerto. Enfim,
vida que segue. Daqui a pouco ele me encontra novamente, me faz a perguntava, e
fica tudo como era antes.
Para não deixar o(a) leitor(a) sem resposta, eu digo: papai
era zagueiro; zagueiro, com muita noção de espaço e que, às vezes, por ser
conhecedor dos caminhos da grande área, se aventurava como atacante. Mas de que
importa essa informação agora, né? Boleiro é lembrado por outro tipo coisa, talvez pela dupla disposição, no campo e no copo, mas, às vezes, não pela posição que ocupa dentro das quatro linhas. E tá falado!
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