E eu queria ser, Romário

4.9.14 Cabotino 0 Comentarios


A Marcelino, meu tio.

No início de 1999 eu tinha quinze anos e todo os domingos acompanhava meu tio Marcelino – irmão mais novo de minha mãe – no campeonato de futebol de várzea que ele jogava. Lateral direito dos bons, sua principal característica: a velocidade tanto no apoio quanto nas subidas à linha de fundo. Espécie de Arce (lateral direito do Palmeiras na época) misturado com o vigor físico de um Cafú, pois como aquele, sabia pôr a bola na área, coisa que este nunca aprendera a fazer.

Estávamos no último ano de uma década estranha. Um decênio que nos dera o Plano Real, uma copa do mundo nos EUA [1994] seguido de um vice-campeonato na França [1998], além do assustadores: “Rombo da Camada de Ozônio” e o “Bug do Milênio”.

Todo o campeonato de várzea que se preze tem um “terceiro tempo” em que os peladeiros resenham o ocorrido durante a partida. E também põe na ordem do dia a fofoca da semana e a “greia” mútua de costume. Tudo isso regado a cervejas, tira-gosto e banho de bica.

O “terceiro tempo” do futebol de várzea é a apoteose de uma cultura que tem sua redenção aos domingos, o futebol.

Pergunto-me: o que faz um cara que trabalha a semana inteira, muitas vezes de segunda a sábado, sacrificar o domingo jogando bola sob um sol de tremer paralelepípedos? Respondo: não sei. Quem conseguir responder a essa pergunta estará mais próximo de decifrar um enigma caro ao nosso país, o futebol.

Após o “terceiro tempo” eu voltava com o meu tio, ambos embriagados, para casa, a diferença etária entre ele e eu deve ser de uns cinco anos a mais para ele. Nesse tempo, meu tio morava em minha casa. Nem me lembro por que ele morava conosco. Minto, acho que foi devido a um entrevero que teve com o meu avô. Iria ficar apenas uns dias até “estivar a chuva” como diz um amigo meu, mas ficou anos dentro de nossa casa e foi um período arretado, porque meu tio é de uma espiritualidade bonachona que faz raiva a esse mundo sisudo e as pessoas que contribuem com esse adjetivo.

Chegamos em casa por volta das 16h, lembro-me o dia, 8 de fevereiro de 1999. Ligamos a tevê e fomos esquentar o feijão, micro-ondas era um artigo que o nosso Plano Real ainda não havia atingido.

Pertencer a uma família não significa apenas compartilhar a consanguinidade, há algo mais do que isso, entre elas, o hábito de almoçar com o prato na mão defronte à tevê, tal qual os mendigos de cócoras no Centro da Cidade, por exemplo. Mas, ao invés da postura de cócoras, sentamos nas cadeiras de bambu que haviam em casa, eram terrivelmente feias e desconfortáveis, mas era o que tínhamos e minha mãe ensinou-me a não reclamar do que se tem, além disso, tinha que ficar na minha em relação à “coroa”, porque com quinze anos eu já bebia como um gambá e ela ficava uma “arara” com isso e ainda hoje fica, mas com o meu tio na época eu tinha um salvo-conduto, era só não avacalhar o sistema, ou seja, que eu segurasse minha onda – ficasse na minha ou coisa do tipo: sujou, limpa.

Não satisfeitos com o futebol pela manhã, iríamos agora ver o futebol espetacularizado na tevê, o jogo seria entre Corinthians e Flamengo no Pacaembu [São Paulo] válido pelo Torneio Rio-São Paulo.

Lá estávamos, a boca ainda distinguia o feijão mulatinho com charque e jerimum. Arroz branco – típico da culinária preguiçosa do pernambucano – e a galinha guisada acentuada de cominho. O copão de suco de acerola gelado, em 1999 a Coca-Cola ainda era difícil, mesmo em um domingo.

Cinco minutos de jogo, Romário pega a bola na linha de fundo esquerda do seu ataque e entra na grande área com um inenarrável drible elástico em cima do volante do Corinthians e da seleção brasileira, Amaral. Na cobertura de Amaral, ninguém mais ninguém menos do que Gamarra, zagueiro do time paulista e da seleção paraguaia, Gamarra que, no ano anterior, saíra da Copa do Mundo da França nas oitavas de final, contra os anfitriões, sem ter cometido uma única falta, detalhe: ele era um dos zagueiros titulares do Paraguai, titular! Mas, não foi capaz de parar o baixinho Romário, tampouco de lhe tomar a bola já próximo da pequena área. Quando o atacante do Flamengo viu os defensores ao chão, deu um sutil toque na bola, um totozinho (hoje mais conhecido como cavadinha) por cima do goleiro Ney e correu para o abraço!

Eu por meu turno, pensei que tinha visto uma miragem. Meu tio por sua vez gritava com a comida ainda na boca: gol da “miséra”! Gol do “carai”!

Pois é, nos anos 1990 o futebol brasileiro ainda quebrava as regras de civilidade e urbanidade, como por exemplo: não falar de boca cheia, quem dirá, gritar. Hoje o baixinho Romário tá no congresso jogando lá o seu “futebol”, ao invés do uniforme; o terno; ao invés da pelota; a caneta. Como faz falta o baixinho em nossos gramados.

Hoje, o nosso futebol nos faz engasgar de raiva, saudade do meu tio gritando aquele gol. E que volte, vá lá, o “Rombo da Camada de Ozônio” e o “Bug do Milênio”, mas, por favor, que volte o desejo de qualquer menino nesse país de querer ser um, Romário.





Gol de Romário contra o Corinthians no Torneio Rio-São Paulo, estádio do Pacaembu, fevereiro de 1999: https://www.youtube.com/watch?v=4D5avBhwSks 

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