A crônica nossa de cada dia

2.9.14 Unknown 2 Comentarios


Lá em casa, quando eu era novinho, os livros não existiam em abundância; nem os leitores. Daí que quando eu comecei a conhecer aquelas versões infantis, reduzidas, dos clássicos da literatura, tive um trabalho imenso para ler "A greve de Sexo", de Aristófanes, porque era inevitável diante das cenas eróticas algum arroubo de tesão juvenil, que seria reprimido a galope por algum adulto responsável, ou transformado em piada por algum primo mais cabuloso. Li várias coisas nesta época, alguns livretos de crônicas, muito interessantes, e até "Os miseráveis", de Victor Hugo. Nota importante é saber que, para mim, aqueles não eram exemplares simplificados das histórias clássicas; eram as próprias obras, sem tirar nem por, tal como o autor as havia concebido. Daí que eu não pude deixar de me ruborizar quando entrei numa grande livraria e vi de longe um calhamaço de num sei quantas páginas com o mesmo título e autor do livrinho magrelo que eu tinha em casa. Meu mundo caiu, me senti enganado. Só aí pude entender a insistência de um colega da escola, que vivia repetindo para mim e uma amiga: "Vocês aí que se acham muito espertinhos, inteligentes, cus de ferro do caralho a
Umas das melhores obras do conto
brasileiro. Fica aqui a sugestão.
quatro, só porque leem livros café-com-leite... Escutem, negócio sério é aqui: Zé de Alencar". Confesso que nunca entendi essa fixação dele em José de Alencar, minha amiga dizia que ele não lia de verdade, tapeava pra impressionar. Não digo, nem desdigo. A arte da cabotinagem está aí para quem quiser lançar mão dela - já vi gente no metrô de Recife lendo Shakespeare, no original, no horário de pico, às 18h, momento em que até o maquinista está em pé. Não duvido, mas também não ponha minha mão no fogo. Na arte da palavra ainda vale ressaltar o desserviço que a escola faz muitas vezes. Calma, não me apedrejem, mas às vezes é muito ruim ser subestimado - sim, é essa a sensação que eu tinha. Passávamos boa parte do ano estudando história da literatura, isso aqui é Barroco, isso é Arcadismo, isso é Romantismo; aqui estão os principais nomes de cada, etc, etc. E quando nos passavam algo para ler, nos davam uma desgraça de um livro didático. Geralmente de um autor desconhecido, muito mal escrito, era uma tortura ter ler e resenhar aquele lixo estético. Ainda lembro o nome de um, chamava-se "O Estudante". Versava basicamente sobre como uma família se desestruturou porque dois irmãos começaram a usar drogas. Se fosse bem escrito, vá lá. Mas eram, via de regra, péssimos. E a intenção da escola era, apenas, incutir o medo. Se eles soubessem que esse tiro sai sempre pela culatra... Mas deixa quieto. O que vale é saber que todas essas feridas a gente tinha que curar com boa literatura; daí que dei um abraço apertado na professora nova que nem titubeou, jogou logo o Brás Cubas pra gente ler. Li o Brás Cubas e o "Quincas Borba"; emendei com o "Macuinaíma", do Oswald. A partir daí eu fui trilhando meu caminho, lia o que achava bom, o que não me agradava jogava fora, deixava de lado mesmo, sem cerimônia. Criei, assim, uma identidade literária, a qual eu recorro sempre que estou entediado com o mundo das letras. Nunca me espantei com o sujeito que me joga na cara seus "40 mil volumes". Sempre achei isso meio cretino. Já praticava, sem saber articular claramente, o conselho que tio Nelson dava há tempos: "na vida deve-se ler pouco e reler muito. A arte da leitura é, na realidade, a da releitura." Crie sua patota de cinco, seis livros fundamentais, e a eles recorra sempre que vida estreitar para o seu lado.

2 comentários:

  1. Eis um bom conselho, em prosa solta. Eu, por meu turno, quando tiver lido a Ilíada/Odisseia do original grego e a Bíblia sagrada,dar-me-ei por satisfeito. Está aí tudo que um homem precisa saber.

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  2. Ah! Lembro-me muito do Renato e do Roberto, e sempre achei meio estranha aquela coisa toda. Esse livro chegou pra mim quando já estava um pouco velho, já conhecia uns 2, dos 4 livros que iria reler como no conselho do Nelson Rodrigues. Naquele tempo dava oficina de leitura literária (projeto da prefeitura do Recife) à crianças do primeiro ciclo do ensino fundamental. Passei a gostar mais das crianças naquele tempo, e qual não foi minha surpresa (nem tão surpreendente assim) quando um guri, em seus oito aninhos, sabia as canções - todas! - dos Racionais de cor e salteado... Os Racionais é que trazia pra ele o gozo estético. Só um tempo depois de limpar minha vista das amarras do saber-poder acadêmico é que fui entender aquilo tudo. De posse desse livro citado, O estudante, da Adelaide Carraro,fui olhar a data de sua primeira edição: 1975. Pimba! Pensei na hora, ditadura militar! Era uma cartilha de bons costumes!
    Obrigado por me trazer de volta essa reflexão, Juarez! abraços

    Ricardo Santana

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