Sei um segredo, você tem medo

9.4.14 Foi Hoje! 0 Comentarios



Ontem, após a quinta semana de exibição, resolvi assistir ao filme Eles voltam (2011) escrito e dirigido pelo cineasta brasiliense, Marcello Lordello. 

Foi uma noite de domingo típica no bairro do Derby, solitária e iminentemente perigosa, acentuada por ser dia de clássico das multidões, Santa Cruz e Sport fizeram a primeira partida decidindo uma vaga na final do campeonato pernambucano, porém, às 20:40h não havia multidão nenhuma nas imediações da Fundaj do Derby. Só o casal de flanelinhas e os namorados incautos que chegavam de táxi ou de carro para pegar aquela última sessão.

A sessão estava relativamente vazia. O silêncio pairava a tal ponto que dava para ouvir o som do ar-condicionado da sala José Carlos Cavalcanti Borges (cinema da Fundaj) e também dos bocejos de alguns espectadores. Devemos condescender estes bocejos, haja vista, ser domingo à noite e, principalmente, pelo ritmo do filme que exige-nos uma contemporização que escapa a socialização de nossos olhares e ouvidos habituados à estética célere da publicidade, dos blockbusters hollywoodianos, ao futebol televisivo e, claro, pela Globo e suas 1001 câmeras em uma noite.

Eles voltam preza pelo tempo morto – onde aparentemente nada acontece –, preza pelos planos longos e abertos como os eternos canaviais da zona da mata pernambucana, preza pelo silêncio e é um filme que plasma a vida dos irmãos Peu (Georgio Kokkosi) e Cris (Maria Luiza Tavares), um casal de adolescentes que é abandonado por seus pais em uma estrada como castigo por estarem brigando, como relatará Cris em seguida, na única ocasião em que ela narra minimamente o que lhe ocorreu. 

Enfim, Eles voltam é um filme que faz falta ao cinema brasileiro porque faz uma reflexão cadenciada dos nossos sentidos já tão saturados de estímulos.

A partir daí o filme passa a ser um walk-movie de um dos temas mais recorrentes no imaginário Ocidental: o regresso para casa. Cris aos doze anos se vê só na estrada, abandonada por tudo o que lhe dá sentido na vida, sua família e, ao som de Clube da esquina vol. I (Tudo o que você podia ser) começa sua pequena odisseia de volta para casa.

Neste périplo ela vai de um assentamento dos sem-terra (MST), onde apesar do estranhamento mútuo – ela é branca, tem um smartphone e comi delicadamente – é tratada com uma dignidade que põe em xeque à reportagem da Globo que desqualifica a “invasão” dos sem-terra em uma plantação de laranjas (da Cutrale) no interior de São Paulo, dizendo ao avô em uma suntuosa mesa de café da manhã, “antes disso eles deveriam ver como eles vivem”, quando já se encontra na casa de seus avós, até ser “resgatada” por Pri (Irma Brown) sua vizinha de casa de veraneio que, talvez seja o seu reflexo futuro, uma personagem saturada da vida metropolitana e da pressão familiar que se refugia, hedonisticamente, no único lugar do mundo que não considera estranho, seu corpo.

Cris é uma menina de classe média alta recifense e, antes de dizerem o jargão batido “classe média sofre”, devemos fazer o exercício de alteridade, pois sem ele, o filme perde a sua estética e sua ética. Para mim, o ponto forte do filme é a relação com o Outro. Há nesta relação todo o conflito de classe e do habitus (a disposição corporal) de Cris no contato com as classes subalternas, e a câmera capta bem este contraste, desde as mudinhas de planta e galinhas no assentamento; ao acanhado pedido de absolvente no banheiro da comerciante que lhe dá guarida e o respectivo primeiro banho de cuia; a telenovela vista em grupo e a faxina na casa de veraneio – ela não sabe pegar em uma vassoura e sente-se logo cansada após alguns segundos de limpeza e vai ver tevê.

Esta indisposição de Cris às atividades práticas do dia-a-dia reflete a crise de experiência do mundo contemporâneo e, principalmente, das classes médias. Podemos detectar isso no contato de Cris com Elayne (Elayne de Moura) – da mesma faixa etária só que com a distância física própria dos condicionamentos de classe –, irmã do trabalhador assentado do MST que lhe leva para casa e lhe dar teto e comida. Elayne apresenta a Cris um mundo semionírico – horizontal e onde dá para se perder embaixo de um bambuzal e ouvir a sua singular sinfonia.

Outro contato marcante é o de Cris com a filha da comerciante que lhe dá abrigo por alguns dias que, assim como a menina Elayne no assentamento, são loquazes nas descrições de suas experiências com o mundo, enquanto Cris permanece em silêncio. A filha da comerciante vai enumerando os acontecimentos de sua vida desde São Paulo (onde nasceu) e depois em Tamandaré (litoral sul pernambucano) até dizer que vai ao Centro do Recife fazer compras.

Esta acentuada escassez de experiência de Cris e de sua classe social fica evidente no trabalho em grupo que ela tem que fazer para a escola quando retorna para casa. Como estava ausente por uns dias, ela é escalada pela professora para fazer com uma colega de turma considerada uma “pária” por suas amigas. Uma vez na casa desta colega, as duas travam uma conversa recheada de monossílabos e após imprimirem as fotografias para o trabalho, Cris começa a ver os retratos da colega de turma pendurados na parede de seu quarto e pergunta quais são aqueles locais das fotografias e sente-se com inveja da vida em trânsito da colega lhe dizendo: “eu sempre morei no mesmo prédio e estudei na mesma escola” ao qual a amiga de turma responde: “sorte a sua”. Após esta conversa, a anfitriã leva Cris ao parapeito do edifício onde mora e as duas tentam localizar lá de cima a partir de uma Recife verticalizada e labiríntica onde fica a escola e o mar. Em seguida, Cris acossada pelo desejo de ir ao centro da cidade, em um desejo oriundo da conversa com a filha da comerciante, e ela e a colega resolvem pegar um táxi, sorrateiramente, para encarar à cidade como um "bambuzal de concreto e aço proibida" para elas.

Por fim, o ponto alto do filme é a relação entre Cris e Peu cuja cena no corredor do hospital sintetiza, em ampla medida, o atual estado das convivências contemporâneas não só entre irmãos adolescentes de sexos distintos, mas de uma sociedade que aprendeu e desenvolveu uma forma de relacionamento mediado por uma técnica, a tecnologia. Cris só consegue entrar no universo do irmão, desde a primeira cena em que ambos lutam pelo celular até a cena no hospital, a partir da interposição tecnológica e é aí que ela faz o irmão se redimir, não só do fato de lhe ter abandonado na estrada sozinha, mas também de alguma peleja maior entre ambos e que talvez tenha sido o fato desencadeador da "viagem particular" de cada membro de sua família àquela altura. Após esta cena, Cris vai visitar à mãe que provavelmente lhe aguardava com aquela sensação que só as mães possuem quando se referem aos filhos que erraram pelo mundo, Eles voltaram.


*Cartaz do filme por Clara Moreira.

por Renato Ribalta

 

             
             
           
            

           
            

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