Sei um segredo, você tem medo
Ontem,
após a quinta semana de exibição, resolvi assistir ao filme Eles voltam (2011) escrito e dirigido
pelo cineasta brasiliense, Marcello Lordello.
Foi uma noite de domingo típica no bairro do Derby, solitária e iminentemente perigosa, acentuada por ser dia de clássico das multidões, Santa Cruz e Sport fizeram a primeira partida decidindo uma vaga na final do campeonato pernambucano, porém, às 20:40h não havia multidão nenhuma nas imediações da Fundaj do Derby. Só o casal de flanelinhas e os namorados incautos que chegavam de táxi ou de carro para pegar aquela última sessão.
Foi uma noite de domingo típica no bairro do Derby, solitária e iminentemente perigosa, acentuada por ser dia de clássico das multidões, Santa Cruz e Sport fizeram a primeira partida decidindo uma vaga na final do campeonato pernambucano, porém, às 20:40h não havia multidão nenhuma nas imediações da Fundaj do Derby. Só o casal de flanelinhas e os namorados incautos que chegavam de táxi ou de carro para pegar aquela última sessão.
A
sessão estava relativamente vazia. O silêncio pairava a tal ponto que dava para
ouvir o som do ar-condicionado da sala José Carlos Cavalcanti Borges (cinema da
Fundaj) e também dos bocejos de alguns espectadores. Devemos condescender estes
bocejos, haja vista, ser domingo à noite e, principalmente, pelo ritmo do filme
que exige-nos uma contemporização que escapa a socialização de nossos olhares e
ouvidos habituados à estética célere da publicidade, dos blockbusters hollywoodianos, ao futebol televisivo e, claro, pela
Globo e suas 1001 câmeras em uma noite.
Eles voltam preza
pelo tempo morto – onde aparentemente nada acontece –, preza pelos planos
longos e abertos como os eternos canaviais da zona da mata pernambucana, preza
pelo silêncio e é um filme que plasma a vida dos irmãos Peu (Georgio Kokkosi) e
Cris (Maria Luiza Tavares), um casal de adolescentes que é abandonado por seus
pais em uma estrada como castigo por estarem brigando, como relatará Cris em
seguida, na única ocasião em que ela narra minimamente o que lhe ocorreu.
Enfim, Eles voltam é um filme que faz falta ao cinema brasileiro porque faz uma reflexão cadenciada dos nossos sentidos já tão saturados de estímulos.
Enfim, Eles voltam é um filme que faz falta ao cinema brasileiro porque faz uma reflexão cadenciada dos nossos sentidos já tão saturados de estímulos.
A
partir daí o filme passa a ser um walk-movie
de um dos temas mais recorrentes no imaginário Ocidental: o regresso para
casa. Cris aos doze anos se vê só na estrada, abandonada por tudo o que lhe dá
sentido na vida, sua família e, ao som de Clube
da esquina vol. I (Tudo o que você podia ser) começa sua pequena odisseia de volta para casa.
Neste
périplo ela vai de um assentamento dos sem-terra (MST), onde apesar do
estranhamento mútuo – ela é branca, tem um smartphone e comi delicadamente – é
tratada com uma dignidade que põe em xeque à reportagem da Globo que
desqualifica a “invasão” dos sem-terra em uma plantação de laranjas (da Cutrale)
no interior de São Paulo, dizendo ao avô em uma suntuosa mesa de café da manhã,
“antes disso eles deveriam ver como eles vivem”, quando já se encontra na casa
de seus avós, até ser “resgatada” por Pri (Irma Brown) sua vizinha de casa de
veraneio que, talvez seja o seu reflexo futuro, uma personagem saturada da vida
metropolitana e da pressão familiar que se refugia, hedonisticamente, no único lugar
do mundo que não considera estranho, seu corpo.
Cris
é uma menina de classe média alta recifense e, antes de dizerem o jargão batido
“classe média sofre”, devemos fazer o exercício de alteridade, pois sem ele, o
filme perde a sua estética e sua ética. Para mim, o ponto forte do filme é a
relação com o Outro. Há nesta relação todo o conflito de classe e do habitus (a disposição corporal) de Cris
no contato com as classes subalternas, e a câmera capta bem este contraste,
desde as mudinhas de planta e galinhas no assentamento; ao acanhado pedido de
absolvente no banheiro da comerciante que lhe dá guarida e o respectivo
primeiro banho de cuia; a telenovela vista em grupo e a faxina na casa de
veraneio – ela não sabe pegar em uma vassoura e sente-se logo cansada após
alguns segundos de limpeza e vai ver tevê.
Esta
indisposição de Cris às atividades práticas do dia-a-dia reflete a crise de
experiência do mundo contemporâneo e, principalmente, das classes médias.
Podemos detectar isso no contato de Cris com Elayne (Elayne de Moura) – da
mesma faixa etária só que com a distância física própria dos condicionamentos
de classe –, irmã do trabalhador assentado do MST que lhe leva para casa e lhe
dar teto e comida. Elayne apresenta a Cris um mundo semionírico – horizontal e
onde dá para se perder embaixo de um bambuzal e ouvir a sua singular sinfonia.
Outro
contato marcante é o de Cris com a filha da comerciante que lhe dá abrigo por
alguns dias que, assim como a menina Elayne no assentamento, são loquazes nas
descrições de suas experiências com o mundo, enquanto Cris permanece em
silêncio. A filha da comerciante vai enumerando os acontecimentos de sua vida desde
São Paulo (onde nasceu) e depois em Tamandaré (litoral sul pernambucano) até
dizer que vai ao Centro do Recife fazer compras.
Esta
acentuada escassez de experiência de Cris e de sua classe social fica evidente
no trabalho em grupo que ela tem que fazer para a escola quando retorna para
casa. Como estava ausente por uns dias, ela é escalada pela professora para
fazer com uma colega de turma considerada uma “pária” por suas amigas. Uma vez
na casa desta colega, as duas travam uma conversa recheada de monossílabos e
após imprimirem as fotografias para o trabalho, Cris começa a ver os retratos da colega de turma pendurados na parede de seu quarto e pergunta quais são aqueles locais das
fotografias e sente-se com inveja da vida em trânsito da colega lhe dizendo: “eu
sempre morei no mesmo prédio e estudei na mesma escola” ao qual a amiga de
turma responde: “sorte a sua”. Após esta conversa, a anfitriã leva Cris ao
parapeito do edifício onde mora e as duas tentam localizar lá de cima a partir
de uma Recife verticalizada e labiríntica onde fica a escola e o mar. Em
seguida, Cris acossada pelo desejo de ir ao centro da cidade, em um desejo
oriundo da conversa com a filha da comerciante, e ela e a colega resolvem pegar
um táxi, sorrateiramente, para encarar à cidade como um "bambuzal de concreto e
aço proibida" para elas.
Por
fim, o ponto alto do filme é a relação entre Cris e Peu cuja cena no corredor
do hospital sintetiza, em ampla medida, o atual estado das convivências contemporâneas
não só entre irmãos adolescentes de sexos distintos, mas de uma sociedade que
aprendeu e desenvolveu uma forma de relacionamento mediado por uma técnica, a
tecnologia. Cris só consegue entrar no universo do irmão, desde a primeira cena
em que ambos lutam pelo celular até a cena no hospital, a partir da
interposição tecnológica e é aí que ela faz o irmão se redimir, não só do fato
de lhe ter abandonado na estrada sozinha, mas também de alguma peleja maior
entre ambos e que talvez tenha sido o fato desencadeador da "viagem particular" de cada membro de sua família àquela altura. Após esta cena, Cris vai visitar à mãe que provavelmente lhe aguardava com aquela sensação que só as mães possuem quando se
referem aos filhos que erraram pelo mundo, Eles voltaram.
*Cartaz do filme por Clara Moreira.
*Cartaz do filme por Clara Moreira.
por Renato Ribalta
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