Crônica de uma morte anunciada, um livro imune aos espoliadores

17.4.14 Foi Hoje! 0 Comentarios


Vivemos a Era do Fetiche e podemos ver suas marcas nas Festas literárias que grassam pelo país de uma década para cá. Uma ampla maioria lotam os auditórios destas Festas para ouvir um escritor falando sem nunca terem lido nada deles, só para ter um autógrafo no final e uma foto selfie postado nas redes sociais, pois o escritor é apenas uma extensão de sua vaidade.

Quantos de vocês já não cruzaram com pessoas que dizem assim: “eu fui à primeira sessão (...) comprei na pré-venda (...) ainda não havia saído e eu já tinha (...) um amigo trouxe dos EUA (...) estava na noite de autógrafos (...) fui à priemere etc.” Como se a primazia a um bem cultural fosse algo além da fruição do próprio objeto artístico e servisse apenas para endossar o currículo narcísico que, evidentemente, está associado a uma hierarquia de classe e a construção de uma distinção feita quase nestes termos: “eu sou foda porque eu tive em primeira mão e você vai pegar o resto seu atrasado”.

Outro dado desta Era são as pessoas que tem acesso primeiro a bens culturais, geralmente seriados e filmes, e que adoram estragar a narrativa contando um trecho marcante da história para os que ainda não tiveram a oportunidade de ver, é o chamado spoiler e seus praticantes são adjetivados de espoliadores – o estraga prazer. 

Diante disso, Crônica de uma morte anunciada é imune aos espoliadores, por quê? Leiam o primeiro parágrafo do livro escrito por Gabriel Garcia Márquez (El Gabo), um escritor nascido das entranhas de uma Macondo

“No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h 30m da manhã para esperar o barco em que chegava o bispo. Tinha sonhado que atravessava um bosque de grandes figueiras onde caía uma chuva branda, e por um instante foi feliz no sono, mas ao acordar sentiu-se completamente salpicado de cagada de pássaros. ‘Sempre sonhava com árvores’, disse-me sua mãe 27 anos depois, evocando os pormenores daquela segunda-feira ingrata” (tradução para o português [BRA] feita por Remy Gorga para a Editora Record).


A excitação desta obra prima do escritor colombiano não é afetada pela revelação logo na primeira linha do livro, mas dar-se a partir daí. O romance escapa dos clichês tipificados pelo romance policial que repete, entre outros lugares-comuns, a cena de que o assassino sempre volta ao local do crime etc. Com sua narrativa “cinematográfica”, Gabo conduz o leitor como um travelling pela vida de Santiago Nasar que é assassinado pelos irmãos de Angela Vicario por ter-lhe desonrado. Em um único dia vemos as séries de contingências que levarão ao trágico fim de Nasar naquela segunda-feira ingrata.

Gabo pega à mão do leitor em Crônica e diz como G. De Andrade em seu lendário Comando da Madruga: “vem comigo”, e o carrega através das veredas de uma leitura única, pois mesmo sabendo do desfecho somos guiados por um flash back alucinante pela vida de Nassar. Além de ser uma narrativa ímpar, Crônica é uma aula de literatura não só para quem deseja escrever ou vive da escrita, mas acima de tudo, para quem admira um trabalho bem feito.

Enfim, Gabo em Crônica ensina aos espoliadores de plantão na Era do Fetiche que a fruição estética de uma narrativa supera qualquer vaidade que tente estraga-la, porque a arte sempre será imune a narcisismos.

por Renato Ribalta


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