Crônica de uma morte anunciada, um livro imune aos espoliadores
Vivemos a
Era do Fetiche e podemos ver suas marcas nas Festas literárias que grassam pelo
país de uma década para cá. Uma ampla maioria lotam os auditórios destas Festas
para ouvir um escritor falando sem nunca terem lido nada deles, só para ter um
autógrafo no final e uma foto selfie postado nas redes sociais, pois o
escritor é apenas uma extensão de sua vaidade.
Quantos
de vocês já não cruzaram com pessoas que dizem assim: “eu fui à primeira
sessão (...) comprei na pré-venda (...) ainda não havia saído e eu já tinha
(...) um amigo trouxe dos EUA (...) estava na noite de autógrafos (...) fui à
priemere etc.” Como se a primazia a um bem cultural fosse algo além da
fruição do próprio objeto artístico e servisse apenas para endossar o currículo
narcísico que, evidentemente, está associado a uma hierarquia de classe e a
construção de uma distinção feita quase nestes termos: “eu sou foda porque eu tive em
primeira mão e você vai pegar o resto seu atrasado”.
Outro
dado desta Era são as pessoas que tem acesso primeiro a bens culturais,
geralmente seriados e filmes, e que adoram estragar a narrativa contando um
trecho marcante da história para os que ainda não tiveram a oportunidade de
ver, é o chamado spoiler e seus praticantes são adjetivados de
espoliadores – o estraga prazer.
Diante
disso, Crônica de uma morte
anunciada é imune aos
espoliadores, por quê? Leiam o primeiro parágrafo do livro escrito por Gabriel
Garcia Márquez (El Gabo), um escritor nascido das entranhas de uma
Macondo
“No dia
em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h 30m da manhã para esperar o
barco em que chegava o bispo. Tinha sonhado que atravessava um bosque de
grandes figueiras onde caía uma chuva branda, e por um instante foi feliz no
sono, mas ao acordar sentiu-se completamente salpicado de cagada de pássaros.
‘Sempre sonhava com árvores’, disse-me sua mãe 27 anos depois, evocando os
pormenores daquela segunda-feira ingrata” (tradução para o português [BRA]
feita por Remy Gorga para a Editora Record).
A
excitação desta obra prima do escritor colombiano não é afetada pela revelação
logo na primeira linha do livro, mas dar-se a partir daí. O romance escapa dos
clichês tipificados pelo romance policial que repete, entre outros
lugares-comuns, a cena de que o assassino sempre volta ao local do crime etc.
Com sua narrativa “cinematográfica”, Gabo conduz o leitor como um travelling pela vida de Santiago Nasar que é
assassinado pelos irmãos de Angela Vicario por ter-lhe desonrado. Em um único
dia vemos as séries de contingências que levarão ao trágico fim de Nasar
naquela segunda-feira ingrata.
Gabo pega
à mão do leitor em Crônica e diz como G. De Andrade em seu
lendário Comando da Madruga: “vem
comigo”, e o carrega através das veredas de uma leitura única, pois mesmo
sabendo do desfecho somos guiados por um flash
back alucinante pela vida de
Nassar. Além de ser uma narrativa ímpar, Crônica é uma aula de literatura não só
para quem deseja escrever ou vive da escrita, mas acima de tudo, para quem
admira um trabalho bem feito.
Enfim,
Gabo em Crônica ensina aos espoliadores de plantão
na Era do Fetiche que a fruição estética de uma narrativa supera qualquer
vaidade que tente estraga-la, porque a arte sempre será imune a narcisismos.
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