A flor e a estátua de bronze

28.4.14 Cabotino 0 Comentarios


Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José!
(José)


No Brasil, o poeta que mais tenho afinidade e cumplicidade é Carlos Drummond de Andrade. E quem não gosta de Drummond é uma pessoa potencialmente desagradável.

Em Copacabana há um circuito de estátuas em homenagem a algumas pessoas de relevo na cultura brasileira e que, evidentemente, moraram ou enalteceram o Rio de Janeiro, são sete delas: Dorival Caymmi; Ary Barroso; Braguinha; Siqueira Campos; Princesa Isabel; Barão do Rio Branco e Drummond.

De todas estas estátuas a de Drummond é disparada em assédio e depredação. Para se ter uma ideia do apreço que as pessoas tem com a estátua há um Tumblr chamado, Meu amigo Drummond[1] que reúne milhares de fotografias enviadas por pessoas do mundo inteiro ao lado da estátua, há até fila para pousar com a imagem do poeta itabirano. Por outro lado, estima-se que desde sua inauguração (2002) até hoje, a estátua do “homem por trás dos óculos e do bigode” (Poema de sete faces) tenha sido alvo de aproximadamente dez avarias, especialmente em seus óculos, o que está orçado, segundo a prefeitura do Rio, no montante de R$ 25.000 gastos nas reparações[2].

Eu fico me perguntando por que a estátua (em bronze) de Drummond causa tanto furor nas pessoas? Ela é mais noticiada do que a do próprio Cristo Redentor (em pedra sabão) com seus braços arqueados e cansados sobre a Baía de Guanabara, onde as pessoas sempre que podem não perdem a oportunidade de ajudar o Cristo imitando o seu gesto, ridicularmente. A estátua de Drummond é curvada, diferente do Cristo que exclama em pé, ela interroga e reflete os “oitenta por cento de ferro nas almas” (Confidência de itabirano) alheias e, os vinte por cento restantes, ela comunica por trás de seus óculos que é a alegria brasileira, que é, diga-se de passagem, bem triste “A culpa é da sombra das bananeiras de meu país, esta sombra mole, preguiçosa” (Explicação).

As recalcitrantes depredações na estátua de Drummond provam de alguma maneira que ela incomoda mais do que as demais, e não é por seu material, o bronze, haja vista, as demais na orla de Copacabana também são, e não é pelos óculos porque na última depredação ela foi pichada, eu acredito que é pelo motivo da estátua, ou seja, o próprio Drummond. Um poeta que escreveu isso “Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de seus mortos / assim te levo comigo, tarde de maio” (Tarde de maio) só pode gerar inquietações nas pessoas. Drummond é a pedra no caminho da hipócrita alegria brasileira “Vomitar esse tédio sobre a cidade. / Quarenta anos e nenhum problema resolvido, sequer colocado. / Nenhuma carta escrita nem recebida. / Todos os homens voltam para casa. / Estão menos livres mas levam jornais / e soletram o mundo, sabendo que o perdem” (A flor e a náusea), diria mais, Drummond é o grão de areia na camisinha ufanista brasileira “Eu também já fui brasileiro / Moreno como vocês. / Ponteei viola, guiei forde / e aprendi na mesa dos bares / que o nacionalismo é uma virtude / Mas há uma hora em que os bares se fecham / e todas as virtudes se negam” (Também já fui brasileiro). 

Drummond acompanhou de perto as transformações no interior da sociedade brasileira dentro e fora do Estado, não devemos esquecer que ele fora funcionário público alocado na pasta do ministro Gustavo Capanema no MES (Ministério da Educação e Saúde Pública) onde não perdeu por nenhum segundo a sua autonomia intelectual e artística, e acompanhou toda Era Vargas em diante e também as mudanças culturais no país, viu de perto os rumos da nação e “seus recalques se sublimando” (Não se mate) mostraram que há tempos – como o atual –, “Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. / Tempo de absoluta depuração. / Tempo em que não se diz mais: meu amor. / Porque o amor resultou inútil. / E os olhos não choram / E as mãos tecem apenas o rude trabalho [...] Chegou um tempo em que não adianta morrer. / Chegou um tempo em que a vida é uma ordem” (Os ombros suportam o mundo). 

A imagem de Drummond gera nas pessoas um magnetismo que mostra e demostra quanto o poeta é intransponível na cultura brasileira, e o quanto ele atormenta com seu grau máximo de exigência em tudo o que tocava e fazia, talvez por isso, hoje seu olhar por trás dos óculos de bronze aponte para as pessoas e para o país que ali dentro, apesar do bronze, há uma flor que fura o asfalto do atraso brasileiro, o tédio latino-americano, o nojo de encarar a primeira década deste século e o ódio de não ver o Brasil se realizar logo.






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