A flor e a estátua de bronze
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José!
(José)
No Brasil, o poeta que mais tenho afinidade e cumplicidade é Carlos
Drummond de Andrade. E quem não gosta de Drummond é uma pessoa potencialmente
desagradável.
Em Copacabana há um circuito de estátuas em homenagem a algumas pessoas
de relevo na cultura brasileira e que, evidentemente, moraram ou enalteceram o
Rio de Janeiro, são sete delas: Dorival Caymmi; Ary Barroso; Braguinha;
Siqueira Campos; Princesa Isabel; Barão do Rio Branco e Drummond.
De todas estas estátuas a de Drummond é disparada em assédio e
depredação. Para se ter uma ideia do apreço que as pessoas tem com a estátua há
um Tumblr chamado, Meu amigo Drummond[1] que
reúne milhares de fotografias enviadas por pessoas do mundo inteiro ao lado da
estátua, há até fila para pousar com a imagem do poeta itabirano. Por outro
lado, estima-se que desde sua inauguração (2002) até hoje, a estátua do “homem
por trás dos óculos e do bigode” (Poema de sete faces) tenha sido alvo
de aproximadamente dez avarias, especialmente em seus óculos, o que está
orçado, segundo a prefeitura do Rio, no montante de R$ 25.000 gastos nas
reparações[2].
Eu fico me perguntando por que a estátua (em bronze) de Drummond causa
tanto furor nas pessoas? Ela é mais noticiada do que a do próprio Cristo
Redentor (em pedra sabão) com seus braços arqueados e cansados sobre a Baía de
Guanabara, onde as pessoas sempre que podem não perdem a oportunidade de ajudar
o Cristo imitando o seu gesto, ridicularmente. A estátua de Drummond é curvada,
diferente do Cristo que exclama em pé, ela interroga e reflete os “oitenta por
cento de ferro nas almas” (Confidência de itabirano) alheias e, os vinte
por cento restantes, ela comunica por trás de seus óculos que é a alegria
brasileira, que é, diga-se de passagem, bem triste “A culpa é da sombra das
bananeiras de meu país, esta sombra mole, preguiçosa” (Explicação).
As recalcitrantes depredações na estátua de Drummond provam de alguma
maneira que ela incomoda mais do que as demais, e não é por seu material, o
bronze, haja vista, as demais na orla de Copacabana também são, e não é pelos
óculos porque na última depredação ela foi pichada, eu acredito que é pelo
motivo da estátua, ou seja, o próprio Drummond. Um poeta que escreveu isso
“Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de seus
mortos / assim te levo comigo, tarde de maio” (Tarde de maio) só pode
gerar inquietações nas pessoas. Drummond é a pedra no caminho da hipócrita
alegria brasileira “Vomitar esse tédio sobre a cidade. / Quarenta anos e nenhum
problema resolvido, sequer colocado. / Nenhuma carta escrita nem recebida. /
Todos os homens voltam para casa. / Estão menos livres mas levam jornais / e
soletram o mundo, sabendo que o perdem” (A flor e a náusea), diria mais,
Drummond é o grão de areia na camisinha ufanista brasileira “Eu também já fui brasileiro
/ Moreno como vocês. / Ponteei viola, guiei forde / e aprendi na mesa dos bares
/ que o nacionalismo é uma virtude / Mas há uma hora em que os bares se fecham
/ e todas as virtudes se negam” (Também já fui brasileiro).
Drummond acompanhou de perto as transformações no interior da sociedade
brasileira dentro e fora do Estado, não devemos esquecer que ele fora
funcionário público alocado na pasta do ministro Gustavo Capanema no MES
(Ministério da Educação e Saúde Pública) onde não perdeu por nenhum segundo a
sua autonomia intelectual e artística, e acompanhou toda Era Vargas em diante e
também as mudanças culturais no país, viu de perto os rumos da nação e “seus
recalques se sublimando” (Não se mate) mostraram que há tempos – como o
atual –, “Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. / Tempo de absoluta
depuração. / Tempo em que não se diz mais: meu amor. / Porque o amor resultou
inútil. / E os olhos não choram / E as mãos tecem apenas o rude trabalho [...]
Chegou um tempo em que não adianta morrer. / Chegou um tempo em que a vida é
uma ordem” (Os ombros suportam o mundo).
A imagem de Drummond gera nas pessoas um magnetismo que mostra e
demostra quanto o poeta é intransponível na cultura brasileira, e o quanto ele
atormenta com seu grau máximo de exigência em tudo o que tocava e fazia, talvez
por isso, hoje seu olhar por trás dos óculos de bronze aponte para as pessoas e
para o país que ali dentro, apesar do bronze, há uma flor que fura o asfalto do
atraso brasileiro, o tédio latino-americano, o nojo de
encarar a primeira década deste século e o ódio de não ver o
Brasil se realizar logo.
[2] http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2013-12-25/estatua-do-poeta-carlos-drummond-de-andrade-e-alvo-de-vandalos (acesso,
28/04/2014)
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