O smartphone matou a solidão
Acredito que a arte seja um sintoma de alguma coisa que a está incomodando, percebi que algumas das últimas postagens do Foi Hoje! Se debruçaram sobre o tema da aceleração das relações humanas acompanhadas do progresso técnico-científico, em especial, as tecnologias de comunicação. Pois bem, com este mote vou lhes narrar o que aconteceu comigo há alguns dias atrás.
Nos últimos dois
dias recebi dez ligações no celular, cinco em cada dia, destas chamadas oito
eram para me pedir alguma coisa, ou seja, oitenta por cento das ligações foi
uma voz em forma de mão estendida, uma mão pedinte e olhem que eu não sou o
ministro da fazenda, nem o diretor do Louvre tampouco o Papa.
Ontem peguei um
ônibus às 6h da manhã para ir à rodoviária e pasmem, ouvi a esta hora uma
discussão de relacionamento - “você não está entendendo... toda vez é isso, basta
eu ir lá para casa de pai pra tu ficar assim... Ela se mudou de lá, menina...”
e uma conversa de negócios “olha estou chegando por lá por volta de 1h da
tarde, daí eu te ligo e dependendo da resposta tu pode fazer o depósito”. Afora
estas conversas que deu para ouvir, ainda vi várias pessoas ao telefone no
ônibus e fora dele nas paradas, ora falando, ora digitando. O silêncio e a
contemplação tornaram-se atentado violento ao pudor.
Uma vez no
ônibus interestadual mais pessoas agarradas ao celular falando da dificuldade que foi pegar o ônibus na hora (...) de quando chegar lá liga (...) e fala pra fulano que já estou no ônibus
etc., e isso ainda não era nem 7h da manhã! A discrição tornou-se tão obsoleta
quanto aquele Nokia 6120.
O que é tão
urgente que não possa esperar um pouco mais para ser dito, um horário mais razoável
– o celular acabou com o horário comercial e ampliou a mais-valia.
Daí vocês podem
me perguntar, mas os celulares não tem culpa e sim os seus donos e suas
inconveniências, será mesmo? Ora, seria muita ingenuidade pensar que uma
técnica (a telefonia móvel) é isenta da asfixia que cada vez mais nos sufoca,
os celulares hoje tem uma infinidade de recursos agregados que se desdobram em
mais recursos comunicativos que nos seduze a utilizá-los sob os infinitos
pacotes falaciosos das operadoras (o Brasil tem uma das tarifas mais caras do
mundo). Enfim, experimentar uma nova técnica modifica também a nossa
experiência com o mundo, por exemplo: quem de vocês pode me dizer onde eu posso
encontrar uma cabine telefônica ou aquele cantinho semiprivado, quase nosso,
onde as pessoas falavam, despreocupadamente, enquanto enrolavam o fio do
telefone fixo como víamos nos filmes e telenovelas?
Para mim todo
mundo com um celular incomoda mais que um mau hálito, aliás, o próprio celular
é uma invenção com mau hálito.
Não sou
nostálgico tampouco advogo um falso idilismo de que no passado às pessoas se
entendiam melhor, o mundo continua o mesmo e as pessoas continuam sem se
entender, pois a compreensão é uma quimera. Só que hoje temos WhatsApp e celulares com dois chips. O
que não dar para admitir é você sair com alguém e esta pessoa ficar na mesa
bulinando, falicamente, um celular. Estou avisando, o próximo que me fizer isso
não dividirá mais comigo nem uma Coca-Cola.
O celular
banalizou a emergência, antes o telefone tocava em sua casa e você sabia que
era algo importante, hoje tem dias que você torce para o celular não tocar ou,
aqui para nós, admita que você o desliga para ninguém lhe encher o saco durante
aquela soneca à tarde. Além de banalizar a emergência ele ampliou a venda de
ansiolíticos. Imagine só o quão tristinho você iria ficar se, de repente, todos
os seus contatos de sua agenda não atendesse mais os seus telefonemas, se os
seus grupos do WhatsApp saísse do ar,
você se sentiria um anjinho caído com as asas em frangalhos – um verdadeiro Lúcifer
com o sinal fora de área.
*Ilustração feita por Banksy, o artista underground mais mainstream do mundo.
*Ilustração feita por Banksy, o artista underground mais mainstream do mundo.
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