Morro do Peludo S/N

24.4.14 Cabotino 0 Comentarios


- Bom dia. Primeiramente vocês devem estar se perguntando por que um jornalista está dando este workshop para cinegrafistas. Pois bem, venho a pedido da empresa fala-vos, ou melhor, mostrar-lhes como proceder no trabalho de campo, especialmente, com os links ao vivo que é o nó górdio da tevê brasileira e mundial. A reportagem ao vivo possui contingências e variáveis que são difíceis de aferir, portanto, vou ensinar-lhes algumas lições para o futuro trabalho de vocês.

A primeira lição que vocês devem aprender é que televisão não é cinema, por isso, nada de inventar tomadas mirabolantes ou planos longos. Isso aqui não é um filme de Antonioni “aposto que estes idiotas não sabem quem foi Antonioni e nunca viram um filme dele”. Façam o simples que o resto do trabalho fazemos na edição. Lembrem-se, tevê é tempo e o tempo é fundamental para os nossos anunciantes que pagam os nossos salários. A tevê para nós acontece no horário do intervalo que é o horário de faturar, por isso, nosso objetivo é a audiência e é ela que atrai a publicidade. Vocês vão lá e filma e só. Vocês são os nossos olhos e isso não é uma metáfora “será que eles sabem o que é uma metáforaacredito que não”. São olhos e nada mais. Então, não quero questionamentos sobre o conteúdo que será veiculado pelos olhos de vocês, não me interessam eles.

Qual é mesmo o nosso objetivo?

- A audiência.

- Muito bem. Em relação a isso, os estudos de campo do nosso pessoal de pesquisa comprova que o drama humano atrai a atenção dos semelhantes “grande descoberta, esse pessoal recebe uma fortuna para descobrir o óbvio, quero ver eles em campo cobrindo uma guerra civil ou conflito de terroristas pelo mundo afora e torcendo para não pisar em uma mina terrestre”. Diante disso, quando o jornalista perguntar a um entrevistado como foi sua tentativa de suicídio e este disser: “eu cortei o meu pulso”, vocês descem a lente e dá um close no pulso para mostrar a cicatriz. Quando ele chorar vocês deem um close nos olhos, pois as lágrimas são um bom negócio para a tevê “Machado de Assis uma vez disse que lágrimas não são argumento, mas para a tevê elas são um argumento irrefutável para a audiência”.

É preciso fazer um mosaico do Brasil e vocês são os olhares treinados que irão montar este mosaico “será que eles entendem que estou falando de uma construção ideológica do Brasil. Não há mosaico o que há é uma invenção que construímos deste país plural e mutante como poucos no mundo”, por exemplo, queremos a genuinidade do Brasil, a raiz e o autêntico. Se vocês tiverem mostrando um índio, nada de filmar a sua Havaiana; a 51 ou o refrigerante que ele toma, pois índio anda de cocar e não tem celular, entenderam. Agora, se a pauta da reportagem pedir, vocês vão e filmam tudo isso que falei “evidentemente veiculamos quem pagar mais, se os madeireiros querem transmitir os índios como seres relapsos e usurpadores que não tem nada mais de autêntico, vamos seguir isso” entenderam?

- Recapitulando, quem dar a sugestão da câmera?

- A pauta, senhor.

- Não me chamem de senhor, não sou tão velho assim, apenas mais experiente do que vocês. Enfim, outra coisa de suma importância. Essa questão é fundamental para as transmissões das autoridades católicas – padres, arcebispos, bispos, cardeais e o papa –, e não serve para outros credos “aposto que eles nem desconfiam que o Vaticano seja um bom negócio para a empresa porque a Santa Madre Igreja vende mais do que boca de urna em véspera de eleição neste país” e esta questão consiste em: vocês tem que filmar a autoridade católica de baixo para cima, uma contra-plongée, este tipo de tomada seria como um submarino emergindo da água e é preciso pegar debaixo para cima, por quê? É um recurso estético eficiente e realça a indumentária da autoridade religiosa “eles nem desconfiam que este recurso de câmera sirva para dar mais realce a autoridade católica, vemos eles debaixo para cima como se fosse a própria arquitetura das catedrais católicas e devemos nos inferiorizar diante desta imagem demiúrgica, é puramente ideológico, pois a Igreja Católica nos paga tão bem quanto show de Roberto Carlos no fim de ano”.

Antes do coffee break irei dar mais algumas lições e elas irão em direção aos trabalhos de campo nervosos, ou seja, manifestações e reportagens sobre o MST. Em relação a este último, vocês devem filmar as manifestações e passeatas deles de cima para baixo, uma plongée – de cima para baixo, haja vista, este recurso ressalta a dimensão da manifestação deles e acentua a sua causa “coitados, nem intuem que com este recurso de câmera faz com que sobrevoemos a passeata, sugerindo superioridade em relação à causa deles que é rebaixada e ilegítima, inferiorizada para nós”. Já em relação aos protestos de rua, passeatas de estudantes e estes meninos que se vestem de preto, os black boyzinhos, ou melhor Black Blocks, vocês devem dar ênfase seguindo o trabalho dos policiais filmando-os por trás e seguindo com a câmera na mão o seu trabalho nas manifestações “acreditem, eles não fazem ideia de que com este recurso de câmera nós estamos dando ênfase ao trabalho da polícia e legitimando-a porque eles estão do nosso lado, ou seja, defendendo o monopólio da força do Estado e com isso fortalecendo a máquina que também monopoliza os impostos e a continuidade do jogo político que assegura a ordem das coisas vigentes, o status quo”.

Após o coffee break, vamos falar do trabalho em Brasília, como vocês devem agir na cobertura dos políticos e suas legendas partidárias e também nos debates eleitorais “eles não fazem ideia das diferentes diretrizes que imprimimos nos partidos, pensam que estamos fazendo a isonomia democrática e estamos não há dúvida disso, o segredo da cobertura política não está tanto nos recursos de câmera, mas sim na edição das imagens”.

Por hora é isso, nos vemos após o intervalo e sugiro que comam bem, pois fora do Brasil não há esta boquinha.


*Imagem do filme Cidadão Kane (Orson Welles, 1941)






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