Morro do Peludo S/N
- Bom
dia. Primeiramente vocês devem estar se perguntando por que um jornalista está
dando este workshop para cinegrafistas. Pois bem, venho a
pedido da empresa fala-vos, ou melhor, mostrar-lhes como proceder no trabalho
de campo, especialmente, com os links ao vivo que é o nó
górdio da tevê brasileira e mundial. A reportagem ao vivo possui contingências
e variáveis que são difíceis de aferir, portanto, vou ensinar-lhes algumas
lições para o futuro trabalho de vocês.
A
primeira lição que vocês devem aprender é que televisão não é cinema, por isso,
nada de inventar tomadas mirabolantes ou planos longos. Isso aqui não é um
filme de Antonioni “aposto que estes idiotas não sabem quem foi Antonioni e
nunca viram um filme dele”. Façam o simples que o resto do trabalho fazemos
na edição. Lembrem-se, tevê é tempo e o tempo é fundamental para os nossos
anunciantes que pagam os nossos salários. A tevê para nós acontece no horário
do intervalo que é o horário de faturar, por isso, nosso objetivo é a audiência
e é ela que atrai a publicidade. Vocês vão lá e filma e só. Vocês são os nossos
olhos e isso não é uma metáfora “será que eles sabem o que é uma metáfora, acredito
que não”. São olhos e nada mais. Então, não quero questionamentos sobre o
conteúdo que será veiculado pelos olhos de vocês, não me interessam eles.
Qual é
mesmo o nosso objetivo?
- A
audiência.
- Muito
bem. Em relação a isso, os estudos de campo do nosso pessoal de pesquisa
comprova que o drama humano atrai a atenção dos semelhantes “grande
descoberta, esse pessoal recebe uma fortuna para descobrir o óbvio, quero ver
eles em campo cobrindo uma guerra civil ou conflito de terroristas pelo mundo
afora e torcendo para não pisar em uma mina terrestre”. Diante disso,
quando o jornalista perguntar a um entrevistado como foi sua tentativa de
suicídio e este disser: “eu cortei o meu pulso”, vocês descem a lente e dá um
close no pulso para mostrar a cicatriz. Quando ele chorar vocês deem um close
nos olhos, pois as lágrimas são um bom negócio para a tevê “Machado de Assis
uma vez disse que lágrimas não são argumento, mas para a tevê elas são um
argumento irrefutável para a audiência”.
É preciso
fazer um mosaico do Brasil e vocês são os olhares treinados que irão montar
este mosaico “será que eles entendem que estou falando de uma
construção ideológica do Brasil. Não há mosaico o que há é uma invenção que
construímos deste país plural e mutante como poucos no mundo”, por exemplo,
queremos a genuinidade do Brasil, a raiz e o autêntico. Se vocês tiverem
mostrando um índio, nada de filmar a sua Havaiana; a 51 ou o refrigerante que
ele toma, pois índio anda de cocar e não tem celular, entenderam. Agora, se a
pauta da reportagem pedir, vocês vão e filmam tudo isso que falei “evidentemente
veiculamos quem pagar mais, se os madeireiros querem transmitir os índios como
seres relapsos e usurpadores que não tem nada mais de autêntico, vamos seguir
isso” entenderam?
-
Recapitulando, quem dar a sugestão da câmera?
- A
pauta, senhor.
- Não me
chamem de senhor, não sou tão velho assim, apenas mais experiente do que vocês.
Enfim, outra coisa de suma importância. Essa questão é fundamental para as
transmissões das autoridades católicas – padres, arcebispos, bispos, cardeais e
o papa –, e não serve para outros credos “aposto que eles nem
desconfiam que o Vaticano seja um bom negócio para a empresa porque a Santa
Madre Igreja vende mais do que boca de urna em véspera de eleição neste
país” e esta questão consiste em: vocês tem que filmar a autoridade
católica de baixo para cima, uma contra-plongée, este tipo de tomada
seria como um submarino emergindo da água e é preciso pegar debaixo para cima,
por quê? É um recurso estético eficiente e realça a indumentária da autoridade
religiosa “eles nem desconfiam que este recurso de câmera sirva para
dar mais realce a autoridade católica, vemos eles debaixo para cima como se
fosse a própria arquitetura das catedrais católicas e devemos nos inferiorizar
diante desta imagem demiúrgica, é puramente ideológico, pois a Igreja Católica
nos paga tão bem quanto show de Roberto Carlos no fim de ano”.
Antes
do coffee break irei dar mais algumas lições e elas irão em
direção aos trabalhos de campo nervosos, ou seja, manifestações e
reportagens sobre o MST. Em relação a este último, vocês devem filmar as
manifestações e passeatas deles de cima para baixo, uma plongée – de
cima para baixo, haja vista, este recurso ressalta a dimensão da manifestação
deles e acentua a sua causa “coitados, nem intuem que com este recurso
de câmera faz com que sobrevoemos a passeata, sugerindo superioridade em
relação à causa deles que é rebaixada e ilegítima, inferiorizada para
nós”. Já em relação aos protestos de rua, passeatas de estudantes e
estes meninos que se vestem de preto, os black boyzinhos, ou
melhor Black Blocks, vocês devem dar ênfase seguindo o trabalho dos
policiais filmando-os por trás e seguindo com a câmera na mão o seu trabalho
nas manifestações “acreditem, eles não fazem ideia de que com este
recurso de câmera nós estamos dando ênfase ao trabalho da polícia e
legitimando-a porque eles estão do nosso lado, ou seja, defendendo o monopólio
da força do Estado e com isso fortalecendo a máquina que também monopoliza os
impostos e a continuidade do jogo político que assegura a ordem das coisas
vigentes, o status quo”.
Após
o coffee break, vamos falar do trabalho em Brasília, como vocês
devem agir na cobertura dos políticos e suas legendas partidárias e também nos
debates eleitorais “eles não fazem ideia das diferentes diretrizes que
imprimimos nos partidos, pensam que estamos fazendo a isonomia democrática e
estamos não há dúvida disso, o segredo da cobertura política não está tanto nos
recursos de câmera, mas sim na edição das imagens”.
Por hora
é isso, nos vemos após o intervalo e sugiro que comam bem, pois fora do Brasil
não há esta boquinha.
*Imagem
do filme Cidadão Kane (Orson Welles, 1941)
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