Notas de verão sobre impressões de primavera [São Paulo] II

29.11.14 Cabotino 0 Comentarios



POLÍTICA
No dia 15 de novembro de 2014, um sábado, fui ao MASP [Museu de Artes de São Paulo] conferir à exposição do acervo e conhecer as dependências do lugar cuja origem deu-se graças à iniciativa do jornalista e empresário paraibano, Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados que, na ocasião, gostaria de brindar a cidade com um museu digno de sua envergadura. Para isso, contou com a desestabilização do patrimônio das artes plásticas europeia do pós-Segunda Guerra mundial. Sem contar todo o mecenato privado proveniente das famílias “quatrocentonas” do estado paulista, como bem relata o jornalista Fernando Morais na sua biografia sobre Chateaubriand – “Chatô, o rei do Brasil”.

Era um sábado de sol que incidia sobre os vidros e os mármores da sede do Banco Safra, do Conjunto Nacional e do Banco do Brasil do outro lado da Alta Augusta, minhas retinas doíam com os reflexos espectrais do capital. Era por volta do meio dia quando saí do Hostel e ganhei à Paulista pela Rua Augusta. Fiquei estarrecido com o trânsito parado na avenida em direção à Consolação – não é algo comum. Instantes depois, descobri o motivo da retenção: um protesto a favor do impeachment da presidente democraticamente reeleita, Dilma Rousseff. Além desta pauta, havia também um “brado retumbante” no coração do centro econômico brasileiro – “Fora PT!”.

No caminho até o museu, deparei-me com uma quantidade significativa de corpos caucasianos envolvidos com a camisa da seleção brasileira, o escudo da CBF no peito, tanto o primeiro uniforme [amarelo] quanto o segundo [azul]. Outra indumentária que pairava sobre os corpos brancos eram as camisetas com os dizeres: “Fora PT” com a foto da presidente Dilma barrada com duas fitas vermelhas cruzadas sobre a sua fotografia da época de guerrilheira. Sem contar, a bandeira brasileira que fazia as vezes de xale no início daquela tarde cujo sol iluminava, mas não esquentava os corpos na Paulista. Alguns cartazes também chamaram-me a atenção, entre eles, um estandartizado por um provável yonsei cuja a foto era a do economista neoliberal austríaco, F. Hayek.

O ato era alimentado por quatro trios elétricos, de médio porte, que espalhavam além do já referido alarido: “Fora PT!” reiteradas vezes na boca dos arrebanhadores da multidão, estavam paramentados com faixas que diziam: “Fraude”; “Fora Dilma”; “Governo antipatriota, bandido, vai acabar com o Brasil, temos que tirá-lo agora, amanhã será tarde”; “Impeachment, já”; “Foro de São Paulo” etc. Súbito, um dos líderes da manifestação, no trio elétrico que estava rente ao vão livre do Masp, pediu silêncio aos demais trios para que o grupo de samba [todos os músicos eram negros, praticamente os únicos] pudessem passar o som sem uma grande interferência sonora dos outros trios. De chofre, o grupo de samba começou a entoar a canção que, evidentemente, não tinha sido composta por eles. Entre as estrofes da música, poderíamos ouvir isto: “O gigante acordou”; “Chega de mentiras”; “Chega de corrupção”; “Não somos de nenhum partido”; “Chega de Estado, queremos à livre iniciativa” etc.


No vão livre do Masp, sentei-me após contemplar a visão do bairro da Bela Vista. Acendi um cigarro e retirei o bloco de notas para tomar algumas. Neste ínterim, uma senhora aproximou-se e perguntou-me: “Você é jornalista?” a qual respondi laconicamente: “Não”. De repente, vi que um sujeito envolvido em uma bandeira do estado de São Paulo, de calça jeans azul, tênis e a cabeça raspada [skinhead] aproximar-se de mim. Sentou-se ao meu lado enquanto tomava notas sobre ele. Percebi que minhas vestimentas e minha aparência não eram compatíveis com a ocasião – camisa rosa estampada com um desenho de B. Dylan; calça jeans; um agasalho de flanela com estampas xadrez vermelha; barba por fazer; cabelo grande etc., evidentemente, não tinha acabado de sair da Baía dos Porcos na Cuba de 1959, tampouco meu visual coadunava-se com o ambiente naquela tarde da Paulista. Diante disso, resolvi sair à francesa de onde estava, até porque ainda não havia falado o suficiente para detectarem meu sotaque e, por conta disso, não quis dar azo para que isso ocorresse.

Falarei de minha visita ao Masp em outra ocasião, no momento, interessa-me discorrer um pouco mais sobre a política e a economia, resumidamente, no estado de São Paulo. E sua relação com os destinos da nação, principalmente, a histórica guinada à economia liberal dos paulistas e sua supremacia econômica que não converteu-se em hegemonia.

POR UMA HEGEMONIA INCONCLUSA

É patente que capital não faz capital antes de ser capital, a economia cafeicultora paulista não é auto-explicativa, houve uma acumulação primitiva deste capital. De início, vale relembrar a tese da imigração que, além de ser uma proposta de embraquecimento da população brasileira; no geral, e paulistana; no particular, contou também com a forte familiarização [habitus] com o trabalho rotineiro [assalariado] dos povos que imigraram para a região das “terras roxas” [São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná] propicias ao plantio do café, entre eles: alemães, italianos, japoneses, ucranianos etc., houve, acima de tudo, uma recusa à assimilação da mão de obra negra recém saída da escravidão, falo aqui no final do século XIX, pois o medo da insurreição quilombola [Palmares] ainda encontra-se vivo no imaginário brasileiro.

Essa forte imigração de mão de obra socializada com uma divisão do trabalho capitalista, somada ao controle estatal dos preços do café – não nos esqueçamos que São Paulo e Minas Gerais revezavam no poder federal desde a Proclamação da República em 1889 – para a exportação no mercado internacional [o café era uma das mercadorias mais valorizadas no mercado externo].

Talvez esteja aí a gênese da acentuada distância entre as regiões brasileiras que, diga-se de passagem, vem desde a colônia porque o Rio de Janeiro alimentava-se do comércio de escravos e da burocracia federal [era a capital] que, perdulariamente, era um escoadouro das divisas superavitárias dos estados produtores de cana de açúcar, algodão etc., aí leiam-se Bahia, Pernambuco e outros. Estes estados enviavam para a capital boa parte de seus excedentes econômicos em troca de apoio político para suas oligarquias latifundiárias – um problema histórico que mantém a desigualdade regional no Brasil até hoje.

Na virada do século XIX para o XX, São Paulo foi estabelecendo-se, a partir da acumulação primitiva do café, como a ponta de lança do desenvolvimento econômico brasileiro. Agora, contando também com uma forte dominação política na casadinha do “Café com Leite”. Desta feita, a relação fisiológica que as oligarquias rurais do Nordeste estabeleciam com o Rio de Janeiro foi sendo paulatinamente voltada para São Paulo, por conseguinte, para preservarem seus interesses econômicos e políticos com a então “locomotiva” [a metáfora mecânica-industrial] que trazia mais de “vinte vagões” fora dos trilhos. Porém, a proeminência econômica dos paulistas não irá refletir na hegemonia, como veremos.

Para se estabelecer uma hegemonia não é suficiente apenas um domínio econômico, tem que haver também um domínio no imaginário e São Paulo, desde a década de 1920, em especial, a partir da Semana de Artes de 1922, estava começando a estabelecer este imaginário através do “Eldorado Paulista” – uma ilha capitalista repleta de oportunidades, mas cercada por um continente pré-capitalista, o resto do Brasil. O “Eldorado” não completou-se na consciência coletiva nacional por inúmeros motivos [apesar da constante, em menor número, migração e imigração para São Paulo até hoje], entre eles, destacaremos dois grandes motivos: a Revolução de 1930 e subsequentemente a derrota paulista frente às tropas varguistas em 1932 e, segundo, um forte recrudescimento da cultura paulista em seu próprio eixo – São Paulo a partir daí começou a mirar seu próprio regaço, não só na esfera da cultura, como também na economia, na política, nas artes etc. Esse ideal auto-suficiente possui algumas origens.

Após 1932, o centro de gravidade nacional migrou novamente para o Rio de Janeiro com todo o processo modernizador do aparato burocrático brasileiro implementado por Vargas na capital federal, entre eles, por exemplo: o MES [Ministério da Educação e Saúde] que contava com o ministro Gustavo Capanema que conseguiu centralizar sob sua pasta, boa parte da intelligentsia brasileira oriunda de diversos estados da federação. Entre eles: Minas, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Bahia e outros. Desta lavra de intelectuais e escritores, podemos destacar: Drummond, G. Ramos, R. de Queiros, José Lins do Rego, Oscar Niemeyer, Lúcio Costa e outros.

Outro ponto que merece destaque sobre este tema é que São Paulo após 1930, não conseguiu emplacar um corpo burocrático que administrasse os destinos da nação em esfera federal. A sucessão de malfadados políticos paulistas que tentaram alçar voo nacionalmente é extensa, podemos destacar: Jânio Quadros [presidente que tentara implementar uma política executiva através de bilhetinhos no Alvorada]; Adhemar de Barros [famoso pelo seu slogan, “Rouba mas faz”]; Paulo Maluff etc. Parece que São Paulo abriu mão dos destinos federativos não só na política lato sensu, como também na esfera militar [há poucos generais paulistas] e eclesiástica [historicamente há poucos cardeais paulistas nascidos no próprio estado] como aponta o sociólogo pernambucano, Francisco de Oliveira em seu artigo, A questão Regional [1].

Outro fator preponderante para a manutenção da distância regional foi o Golpe Militar de 1964 e seu correspondente “milagre econômico” durante a década de 1970. O “milagre” drenou boa parte dos recursos federativos para obras públicas [em sua maioria na construção civil que arregimenta toda a cadeia produtiva do setor] para a região Sudeste, quase como um represália pela histórica insurreição nordestina que, desta vez, clamava por reforma agrária e por uma maior participação da classe trabalhadora, eminentemente rural, na participação dos lucros e por melhores condições de trabalho, como por exemplo, As Ligas Camponesas.

A economia paulista deu uma acentuada virada para à indústria com forte ênfase urbana, fazendo com que o campo torna-se secundário como podemos constatar na série de documentários da Caravana Farkas [Os retirantes etc]; nos filmes de João Batista de Andrade [O homem que virou suco etc]; Luiz Sérgio Person [São Paulo S/A]; nas peças de G. Guarniere [Eles não usam black tie]; no livro de João Manoel Cardoso [Capitalismo tardio]; nas fotografias de Hans Gunter Flieg [suas fotografias sobre a industrialização em São Paulo] e nos contos de João Antônio [Malagueta, Perús e Bacanaço]. Neste último exemplo, evidencia-se o outro lado da moeda – o lumpemproletariado exilado da utopia “Eldorática” paulista.

Em São Paulo não houve um ética capitalista daquela que Weber se refere na gênese do capitalismo moderno nos países de matrizes protestantes, em especial, os calvinistas. No estado dos Penteados grassou uma burguesia fortemente marcada por um liberalismo avesso à burocracia federal, ou seja, contrário ao Estado nacional cada vez mais consolidado e pungente. A revolução burguesa paulista fora acentuadamente marcada por uma divisão do trabalho voraz. A burguesia fez a revolução, só que não de maneira clássica como no caso francês, tomou as rédeas da economia mas não conseguiu finalizar a hegemonia que se daria com a organização da cultura.

À medida que o Estado brasileiro crescia e tornava-se cada vez mais centralizador, o interesse paulista por esta instituição altamente voraz e poderosa, diminuía. Talvez pela não identificação com um imaginário popular nacional decorrente da própria colcha de retalhos étnicas que é a cidade de São Paulo – local por excelência para a implementação de uma hegemonia nacional em virtude do forte aparato na indústria cultural. Esta incapacidade de emplacar uma visão de Brasil nascida no seio de sua cultura é patente, basta vermos os símbolos que São Paulo tentou “vender” para o Brasil: Mazzaropi como filho dileto do empreendimento da Vera Cruz Filmes, uma tentativa da burguesia paulista para criar uma indústria cinematográfica a partir de pastiches do cinema norte-americano e europeu, evidentemente, o caipira Mazzaropi não decolou para fora do Recreio dos Bandeirantes [São Paulo]. Diferente do imaginário do cangaceiro e da favela carioca que possuem forte apelo comercial e de identificações nacionais até hoje. Para além de Mazaroppi, podemos destacar o “samba paulista” que, excetuado Adorinan Barbosa, não conseguiu alçar outro sambista carismático em escala nacional. Ainda na música, seu filho mais ilustre, Chico Buarque de Holanda fez toda a sua carreira musical, dramatúrgica e romanesca no Rio de Janeiro e em Paris. É do Rio de Janeiro também a maior produtora do imaginário nacional, em termos de indústria cultural, a Rede Globo. Exceção seja feita ao Rap que desde Racionais MC’s vem consolidando um imaginário paulista no Brasil, porém, sua irradiação não é de amplo espectro porque sua música não alcança à indústria cultural brasileira.

Desconfiamos que São Paulo, assim como Nova York [centro econômico norte-americano] consomem e usufruem de culturas que, geralmente, são mais produzidas fora de seus domínios. Porém, os nova-iorquinos tem o MoMA, o Metropolitan e o Gugueheim que fazem frente à qualquer museu do mundo, São Paulo tem uns bons e diria até excelentes museus, mas não possuem um Woody Allen e tampouco um Philip Roth para construírem e venderem um imaginário de sua cidade para o mundo. Por outro lado, faz tempo que São Paulo não emplaca uma cinegrafia de peso e uma literatura do tamanho de sua relevância econômica. Um cinema com forte marca paulista agora está sendo reconhecido em alcance nacional, falo aqui do Cinema Marginal da Boca do Lixo [décadas de 1960-70] talvez essa não legitimação histórica seja proveniente da própria natureza da “marginália ou udigrudi” desta cinegrafia, um cinema “sujo” e “rústico” [Candeias, Tonacci, Sganzerla].

Já em relação à literatura, houve um “sopro” de criatividade nos anos 1990 com a geração de M. Aquino, L. Ruffato, M. Freire e outros, porém, não foi uma geração suficientemente capaz [talvez não fosse o desejo deles mesmo] de impor sua “visão de mundo” ou de cidade para o Brasil, sem contar que a maioria destes escritores não são paulistas.

DE VOLTA AO MASP 

A passeata pró impeachment de Dilma [“Fora PT!] não atingiu às dimensões da Marcha da Família com Deus pela Liberdade organizada pelo então governador Adhemar de Barros em 19 de março de 1964, doze dias antes do Golpe. Curiosamente, Adhemar de Barros pró-militares fora destituído por estes durante o Regime Militar. 

O ensolarado sábado dia 15 de novembro que surpreendeu-me com a intempestuosa onda “patriótica” em verde-amarelo onde encontravam-se uma “fauna” sui generis de representações sociais, ou, ao menos auto proclamadores de tais como por exemplo: maçons, grupos “apartidários”, assinantes da “veja”, grupos refratários à corrupção [tautológico, não?]. Lembravam até aquele Movimento de 2007, na mesma Av. Paulista, o “Cansei” encabeçado pelo presidente da OAB em São Paulo, Luís Flávio Borges D´Urso. Contando também com socialites, apresentadoras [Hebe Camargo], cantoras [Ivete Sangalo] que entoavam um: “Cansei de corrupção”; “Chega desta carga tributária!” como se não fossem eles mesmos os maiores sonegadores de impostos deste país. E ah! Entoavam também medidas profiláticas para conter o “caos aéreo” porque, para eles, aeroporto estava convertendo-se em rodoviária. Ainda bem!

O que deu para perceber, até o momento em que tive “fígado” para suportar tudo aquilo, é que este protesto foi uma “revanche” ao ocorrido no dia anterior na mesma Av. Paulista: um protesto liderado pelo MST, MTST e outras organizações de minorias sociais que lutam, entre outras reivindicações, por moradia na capital paulista. A passeata destes “socialistas morenos” assustou toda a região da Paulista. Estava no metrô na hora da concentração quando fui surpreendido na Estação da Consolação por uma “maré” vermelha com gente morena, de pouca estatura e sem camisa verde amarela com o escudo da CBF no peito, gritando e apitando pelos túneis do metrô, seguidos de perto, é claro, pelos seguranças da empresa terceirizada. Em São Paulo, faz-se necessário vigiar de perto tudo aquilo que esteja relacionado ao Estado e ao dever que este deve ter perante à população que alimenta este “mostro frio” como nos diz Nietzsche, mas mais frio do que ele só o laissez-faire da Av. Paulista.

Após o skin head ter sentado ao meu lado, saí da Paulista e tomei um metrô no Trianon do Masp com destino ao Brás, estava cansado daquele Brasil mais “branco” do que o cartaz com a foto de F. Hayek.

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por Renato K. Silva - Pós-graduando em Ciências Sociais pela UFRN




[1] Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/v7n18/v7n18a03.pdf Acesso em: 26 de nov. 2014.
Crédito da imagem disponível em: http://www.blogdajoice.com/intervencao-militar-racha-passeata-anti-dilma-na-paulista/ Acesso em: 26 de nov. 2014.

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