Notas de verão sobre impressões de primavera [São Paulo] I

22.11.14 Cabotino 1 Comentarios


por Renato K. Silva*

Ano passado, entre os meses de setembro e outubro, fiz minha primeira viagem internacional. Visitei a cidade de Santiago, capital do Chile. Na ocasião, fui arrebatado pela primavera abaixo dos trópicos, pois a cidade chilena, fica abaixo do trópico de Capricórnio e, por conseguinte, o frio da região temperada assim como todos os matizes oriundos de uma outra cultura, eminentemente andina, foram de grande relevância para as “Notas[1]” que teci após a viagem. Este ano, conheci São Paulo (capital) que, em termos de temperatura, assemelha-se muito com a cidade de Roberto Bolaño, excetuando que a capital paulista não fica nos Andes e por conta disso, não atinja temperaturas tão diminutas. O trópico de Capricórnio corta São Paulo e como nas linhas de Herry Miller – hiperbólicas – a cidade apresenta-se, para o forasteiro, toda a sua exuberante gradiloquência. Como ponto de partida, seguirei pelo “combustível” que move qualquer sociedade, a gastronomia e seus correlatos hábitos – o que se come, como se come, as preferências e os costumes do beber e do comer. Além desta seção sumária sobre a cultura da mesa na Pauliceia, vamos ter outras que versarão sobre política, bairros, museus etc,. Dito isto, vamos às “Notas”.
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GASTRONOMIA

Há uma metáfora que grassa sobre a consciência coletiva brasileira, ela diz que São Paulo é a locomotiva nacional. Seguindo esta metáfora mecânico-industrial digo-vos que o combustível desta locomotiva é a proteína animal. Acredito que São Paulo seja, das regiões que conheci até agora no Brasil, o lugar que se come melhor, seguido por Belém e Salvador. 

No meu primeiro dia na capital paulista, cheguei na madrugada do domingo para a segunda [16/11/2014] esfomeado. O táxi do aeroporto de Congonhas para a região da Paulista [Bairro da Bela Vista] custou-me R$ 70,00 e olhem que ainda rachei a corrida com mais três passageiros. Um funcionário de uma empresa de transporte de passageiros no aeroporto disse-me, com forte sotaque de minha região, o Nordeste: “Aqui é São Paulo, é tudo assim aqui...” Fazendo referência aos preços elevados. Tomei um táxi com outro taxista que fez um desconto de dez reais pela corrida. A viagem durou uns quinze minutos até à Bela Vista, no decurso, o motorista com um sotaque em que imbricavam-se a sintaxe nordestina com a paulista, percebi que os subalternos da vida noturna são eminentemente nordestinos, assim como da vida diurna. Disse-me que estava no ramo há mais de 20 anos etc. etc. etc. 

Cheguei ao Hostel por volta de uma hora da manhã, ajustei o relógio ao horário brasileiro de verão, ou seja, uma hora a mais do meu fuso horário. Perguntei ao funcionário do Hostel onde poderia comer àquela altura. Disse-me que na Rua Augusta havia uma lanchonete aberta 24h por dia. Deixei minhas malas e segui para o caminho indicado. Pelo transcurso, vi alguns skin heads na rua Peixoto Gomide e uma boemia de fim de festa – mendigos vomitando, traficantes vendendo cocaína, prostitutas “mangueando” alguma coisa – típica de uma madrugada de domingo para segunda, mesmo na maior cidade do hemisfério sul.

Na lanchonete que chama-se: BH Lanches cujo dono é o mesmo da lanchonete do Estadão que fica no final da Rua Consolação, percebi que os funcionários são chamados pelos nomes de seus estados natais – Bahia, Sergipe etc. – antes de entrar no estabelecimento. Fiz uma visita à Av. Paulista pela Augusta até o Trianon do Masp às 2h da manhã. Pelo caminho, viciados em crack, seguranças das instituições bancárias, um ciclista todo equipado e muito frio.

Na BH Lanches pedi um sanduíche de calabresa com vinagrete que custou quase R$ 8,00. No recinto, detectei uma dupla de gringos falando em italiano. E súbito, apareceu um mendigo para tomar um pingado [leite com café] e começou a entabular uma conversa em inglês com um dos italianos que estava tomando cerveja Therezópolis [R$ 15,00 a unidade] enquanto o outro saiu para fumar. O sanduíche chegou e qual não foi a minha surpresa com o primor da iguaria. Um pão francês assado na chapa com generosas fatias de calabresa frita também na chapa e uma vinagrete deliciosa. Para acompanhar, deram-me duas bisnagas de ketchup e mostarda – os paulistanos não apreciam maionese, ao menos nas lanchonetes, e não há sachês – a opulência dá o ritmo da vida, mesmo na madrugada de um domingo para segunda.

VIRADO À PAULISTA

À tarde, após minha ida à USP pela manhã depois de tomar o café da manhã do Hostel que, diga-se de passagem, é a metonímia de uma cultura movida à proteína animal – pão de caixa, café, leite, geleia, presunto, queijo, bolacha, granola e biscoitos. Ao saí da USP tomei um ônibus [R$ 3,00] para a região do Centro, desejava conhecer à Catedral da Sé. Antes do coletivo atingir à região, desci na Praça Roosevelt e fui andando. Previamente ao meu encontro com a Catedral, parei para almoçar em um restaurante porque já passava das 15h e estava esfomeado. No estabelecimento, pedi um prato que chamou-me a atenção, Virado à paulista. Enquanto esperava a vinda da refeição, fiquei observando os transeuntes não tão céleres quanto os do Centro do Recife, a vida mental na Paulicéia é menos nervosa do que a da minha cidade, talvez seja ausência do mormaço e do gás metano oriundo dos manguezais recifenses. Percebi também as inúmeras bancas de revistas e sebos na região do Centro – os paulistas consomem muito o mercado editorial. 

O prato veio e digo-vos, apesar de minha fama de apetite pantagruélico, que ali comiam duas pessoas e estariam satisfeitíssimas. Eis os ingredientes oriundos em uma travessa de alumínio: arroz, feijão mulatinho misturado com pequenas fatias de ovo frito, couve flor refolgada, uma banana empanada, uma fatia de bisteca suína, calabresa, bacon e um ovo frito com gema mole sobre a “montanha” e, sim, uma porção de salada com alface, tomate e cebola.  O garçom disse-me: “isso é um prato bonito!”. 

Comi-o com satisfação; no início e com sofreguidão; ao cabo, acho que com o misto de orgulho e crença desde a tenra idade que não se pode desperdiçar comida, talvez fruto de uma consciência formada no período pré-plano Real. Após a opulenta refeição, ganhei um cafezinho cortesia da casa – um café extremamente forte. Paguei a refeição [R$ 16,00 que terminou ficando por 15 porque o caixa não tinha troco para vinte] achei o preço até razoável. Depois pensei: “é o Centro e todo o Centro é ‘marginal’”.

SANDÚICHE DE PERNIL 

Falei acima que a força que movimenta São Paulo e os paulistanos é a proteína animal, talvez pelo excessivo frio e o ritmo frenético da cidade, o excessivo consumo proteico seja em escala industrial. Há um ritmo quase fordista na produção do sanduíche de pernil tanto na BH Lanches quanto na Lanchonete Estadão. Comi nesta última um sanduíche [R$ 12,00] de pernil às 2h da manhã e o balcão de atendimento não parava um segundo. Várias pessoas esgueiravam-se nos balcões de mármores que margeam às paredes do estabelecimento, praticamente não há cadeiras no Estadão, no BH ainda têm. As pessoas comem como se estivessem em uma linha de montagem. Atentei também que o paulistano consome muita pimenta in natura [servida em pequenas tigelas que ficam dispostas no balcão], seja na coxinha [iguaria muito apreciada pela população], nos sanduíches, nas refeições etc.

O sanduíche de pernil é sanguinolento, é carne por carne, não há um tratamento no sentido de especiarias e temperos. Ele é servido em um pão francês fresco cuja superfície é transbordada pela megalomaníaca quantidade de carne dentro do pão. É praticamente impossível não se lambuzar com a iguaria. Se a oferta de proteína é em escala industrial, o consumo não seria diferente.

CHURRASCO GREGO

Não pensem que o consumo excessivo de proteína animal que dá as condições materiais para a “revolução permanente” na economia paulista seja privilégio dos segmentos abastados da população da zona sul. Visitei a região do Brás e encarei o famigerado sanduíche grego [R$ 3,00]: um pãozinho francês recheado com uma carne de procedência no mínimo duvidosa, mas daí, fecha-se os olhos e mete o dente, além disso, as bactérias são termo sensíveis e o sanduba é servido quente. Só não resolvi encarar os condimentos que encontravam-se expostos ao sol o dia inteiro. Para não entalar-se com a iguaria, o refresco era servido à vontade a partir daquelas máquinas que convertem o sabor dos refrescos a partir de suas cores. O sanduíche é uma delícia e compartilhei-o com convivas de toda sorte, mulheres com grandes sacolas de compras, bolivianos [falarei deles com mais detalhes em outro texto] que labutam na indústria têxtil das adjacências, crianças coloridas pelo sol e pelas longas caminhadas sob a canícula do dia ao acompanhar suas mães às compras. 

A região do Brás foi a que encontrei as coisas mais em conta na capital paulista. Para se ter uma ideia da acessibilidade do lugar, uma garrafa de água mineral de 500ml que na Rua 25 de março [maior centro de consumo popular do país] custa R$ 2,00, enquanto no Brás a mesma custa R$ 1,00.

OS SUCOS

Falei outrora que, até agora, São Paulo é o lugar do Brasil em que visitei onde se come melhor e os sucos são uma prova cabal disso. Em Recife, é raro um estabelecimento alimentício que venda suco direto da fruta, excetuando os sucos de laranja, os demais são todos provenientes da polpas de frutas industrializadas. Na Pauliceia Desvairada, fazendo alusão a como Mário de Andrade chamava sua cidade, há um misto de seções de supermercado com quitandas nas cozinhas dos bares e lanchonetes. Em todos que visitei, encontrei um engradado de inox depependurado pelo teto onde encontramos toda sorte de frutas, em um amálgama de design indústrial com a profussão colorida das frutas tropicais. Os sucos não levam açúcar. Tomei vários sucos de laranja, abacaxi com hortelã etc., um reles suco de laranja em São Paulo leva a “gordura” típica da cidade, são quase dez laranjas que o garçom despeja em expremedores industriais de aço inox e quase podemos sentir o ácido cítrico explodir de vigor em sua forma recém modificada. Algumas pedras de gelo e pronto! Você bebe com a satisfação de que podemos usufruir da fruticultura independente da Coca-Cola, do Mac Donald’s e das polpas industrializadas.

O FILÉ À PARMEGIANA  

Em um dos meus últimos dias na capital paulista, decidi encarar um filé à parmegiana que há algum tempo vinha me “namorando” lá na BH Lanches. Pedi um e pasmen quando surgiu o prato. Um longo prato de ágata onde tinha: uma porção geneorsa de arroz branco temperado com especiarias [talvez salsa, coentro e outras coisas] muito bem preparado, uma porção de batata frita [sequinhas] generosa e em outro recipiente de alumínio, duas gigantescas fatias de filé “nadando em queijo” muçarela. Pensei “vamos lá, o desafio é grande mas com a graça de Deus vamos vencê-lo”. Comi-o com satisfação e sofreguidão, eis aí a tônica da culinária paulista. Creio que o excesso da cozinha paulista seja em virtude de encarar a magnitude da cidade, o frio tanto externo quanto interno das pessoas etecetera e tal. O prato custou-me R$ 21,00 com a sensação de missão cumprida. Ao cabo, alguns grãos de arroz no prato foi o saudo da comilança. 

PF - Prato feito

Bati um prato feito no Centro, defronte à Catedral da Sé em um sábado à noite. Na ocasião, estava acontecendo o jogo entre Botafogo e Fluminense pela 31ª rodada do Campeonato Brasileiro da Série A. O Botafogo estava perdendo o jogo por um a zero e a resenha futebolística no bar/lanchonete estava candente. Apostas aconteciam em meio a previsão de rebaixamento do Botafogo e do Palmeiras. Pedi o cardápio a um dos garçons e o mesmo disse-me “não tem, o que você deseja?” respondi-o “veja-me um PF de frango assado”. Sentei-me esperando o prato e, de chofre, surgiu outro garçom de um ambiente subterrâneo com um prato fumegante onde podíamos ver em uma espécie de “yin-yang” bem brasileiro, arroz e feijão separados em um prato de louça mais fundo do que minhas olheiras que, aquela altura na capital paulista, estavam mais fundas do que dois pratos de sopa. Em seguida, surgiu um prato de salada: tomate, cebola e muita alface e, subsequentemente, outro prato com uma porção generosa de frango assado na chapa. Para acompanhar, pimenta, farinha, azeite, vinagre e sal. Comi com satisfação e no final, a sensação de praxe, sofreguidão. Acredito que a mesa farta seja diretamente proporcional a ansiedade da cidade. Custo total do PF, R$ 8,00 com direito a um cafezinho cortesia da matriz – “perto do Centro, longe da cruz”.  

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pós-graduando em Ciências Sociais pela UFRN




[1] Disponível em: http://foihoje.blogspot.com.br/2013/11/notas-de-verao-sobre-impressoes-de.html Acesso em 20 de nov. 2014. Além desta “Nota” existem mais três que podem ser encontradas no mesmo endereço eletrônico.
Fonte das imagens: Google Imagens. 

Um comentário:

  1. Cabotino, o crítico da nova culinária metafisica no "Foi Hoje", seu blogger de sempre :P
    Também queremos ler sobre a Bienal de arte, Cabotino!! Ou não ficou sabendo que os artistas brasileiros eram todos pernambucanos? Sempre pernambucanos -falou a gringa com um pouco de raiva.

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