Notas de verão sobre impressões de primavera [São Paulo] I
por Renato K. Silva* Ano passado, entre os meses de setembro e outubro, fiz minha primeira viagem internacional. Visitei a cidade de Santiago, capital do Chile. Na ocasião, fui arrebatado pela primavera abaixo dos trópicos, pois a cidade chilena, fica abaixo do trópico de Capricórnio e, por conseguinte, o frio da região temperada assim como todos os matizes oriundos de uma outra cultura, eminentemente andina, foram de grande relevância para as “Notas[1]” que teci após a viagem. Este ano, conheci São Paulo (capital) que, em termos de temperatura, assemelha-se muito com a cidade de Roberto Bolaño, excetuando que a capital paulista não fica nos Andes e por conta disso, não atinja temperaturas tão diminutas. O trópico de Capricórnio corta São Paulo e como nas linhas de Herry Miller – hiperbólicas – a cidade apresenta-se, para o forasteiro, toda a sua exuberante gradiloquência. Como ponto de partida, seguirei pelo “combustível” que move qualquer sociedade, a gastronomia e seus correlatos hábitos – o que se come, como se come, as preferências e os costumes do beber e do comer. Além desta seção sumária sobre a cultura da mesa na Pauliceia, vamos ter outras que versarão sobre política, bairros, museus etc,. Dito isto, vamos às “Notas”.
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GASTRONOMIA
Há uma metáfora que grassa sobre a
consciência coletiva brasileira, ela diz que São Paulo é a locomotiva nacional.
Seguindo esta metáfora mecânico-industrial digo-vos que o combustível desta
locomotiva é a proteína animal. Acredito que São Paulo seja, das regiões que
conheci até agora no Brasil, o lugar que se come melhor, seguido por Belém e
Salvador.
No meu primeiro dia na capital
paulista, cheguei na madrugada do domingo para a segunda [16/11/2014]
esfomeado. O táxi do aeroporto de Congonhas para a região da Paulista [Bairro
da Bela Vista] custou-me R$ 70,00 e olhem que ainda rachei a corrida com mais
três passageiros. Um funcionário de uma empresa de transporte de passageiros no
aeroporto disse-me, com forte sotaque de minha região, o Nordeste: “Aqui é São
Paulo, é tudo assim aqui...” Fazendo referência aos preços elevados. Tomei um
táxi com outro taxista que fez um desconto de dez reais pela corrida. A viagem
durou uns quinze minutos até à Bela Vista, no decurso, o motorista com um
sotaque em que imbricavam-se a sintaxe nordestina com a paulista, percebi que
os subalternos da vida noturna são eminentemente nordestinos, assim como da
vida diurna. Disse-me que estava no ramo há mais de 20 anos etc. etc. etc.
Cheguei ao Hostel por volta de uma
hora da manhã, ajustei o relógio ao horário brasileiro de verão, ou seja, uma
hora a mais do meu fuso horário. Perguntei ao funcionário do Hostel onde
poderia comer àquela altura. Disse-me que na Rua Augusta havia uma lanchonete
aberta 24h por dia. Deixei minhas malas e segui para o caminho indicado. Pelo
transcurso, vi alguns skin heads na
rua Peixoto Gomide e uma boemia de fim de festa – mendigos vomitando,
traficantes vendendo cocaína, prostitutas “mangueando” alguma coisa – típica de
uma madrugada de domingo para segunda, mesmo na maior cidade do hemisfério sul.
Na lanchonete que chama-se: BH
Lanches cujo dono é o mesmo da lanchonete do Estadão que fica no final da Rua
Consolação, percebi que os funcionários são chamados pelos nomes de seus
estados natais – Bahia, Sergipe etc. – antes de entrar no estabelecimento. Fiz
uma visita à Av. Paulista pela Augusta até o Trianon do Masp às 2h da manhã.
Pelo caminho, viciados em crack, seguranças das instituições bancárias, um
ciclista todo equipado e muito frio.
Na BH Lanches pedi um sanduíche de calabresa
com vinagrete que custou quase R$ 8,00. No recinto, detectei uma dupla de
gringos falando em italiano. E súbito, apareceu um mendigo para tomar um
pingado [leite com café] e começou a entabular uma conversa em inglês com um dos
italianos que estava tomando cerveja Therezópolis [R$ 15,00 a unidade] enquanto
o outro saiu para fumar. O sanduíche chegou e qual não foi a minha surpresa com
o primor da iguaria. Um pão francês assado na chapa com generosas fatias de
calabresa frita também na chapa e uma vinagrete deliciosa. Para acompanhar,
deram-me duas bisnagas de ketchup e mostarda – os paulistanos não apreciam
maionese, ao menos nas lanchonetes, e não há sachês – a opulência dá o ritmo da
vida, mesmo na madrugada de um domingo para segunda.
VIRADO À PAULISTA
À tarde, após minha ida à USP pela
manhã depois de tomar o café da manhã do Hostel que, diga-se de passagem, é a
metonímia de uma cultura movida à proteína animal – pão de caixa, café, leite,
geleia, presunto, queijo, bolacha, granola e biscoitos. Ao saí da USP tomei um
ônibus [R$ 3,00] para a região do Centro, desejava conhecer à Catedral da Sé.
Antes do coletivo atingir à região, desci na Praça Roosevelt e fui andando.
Previamente ao meu encontro com a Catedral, parei para almoçar em um
restaurante porque já passava das 15h e estava esfomeado. No estabelecimento,
pedi um prato que chamou-me a atenção, Virado à paulista. Enquanto esperava a
vinda da refeição, fiquei observando os transeuntes não tão céleres quanto os
do Centro do Recife, a vida mental na Paulicéia é menos nervosa do que a da
minha cidade, talvez seja ausência do mormaço e do gás metano oriundo dos
manguezais recifenses. Percebi também as inúmeras bancas de revistas e sebos na
região do Centro – os paulistas consomem muito o mercado editorial.
O prato veio e digo-vos, apesar de
minha fama de apetite pantagruélico, que ali comiam duas pessoas e estariam
satisfeitíssimas. Eis os ingredientes oriundos em uma travessa de alumínio:
arroz, feijão mulatinho misturado com pequenas fatias de ovo frito, couve flor
refolgada, uma banana empanada, uma fatia de bisteca suína, calabresa, bacon e
um ovo frito com gema mole sobre a “montanha” e, sim, uma porção de salada com
alface, tomate e cebola. O garçom
disse-me: “isso é um prato bonito!”.
Comi-o com satisfação; no início e com
sofreguidão; ao cabo, acho que com o misto de orgulho e crença desde a tenra
idade que não se pode desperdiçar comida, talvez fruto de uma consciência
formada no período pré-plano Real. Após a opulenta refeição, ganhei um
cafezinho cortesia da casa – um café extremamente forte. Paguei a refeição [R$
16,00 que terminou ficando por 15 porque o caixa não tinha troco para vinte]
achei o preço até razoável. Depois pensei: “é o Centro e todo o Centro é ‘marginal’”.
SANDÚICHE DE PERNIL
Falei acima que a força que movimenta
São Paulo e os paulistanos é a proteína animal, talvez pelo excessivo frio e o
ritmo frenético da cidade, o excessivo consumo proteico seja em escala
industrial. Há um ritmo quase fordista na produção do sanduíche de pernil tanto
na BH Lanches quanto na Lanchonete Estadão. Comi nesta última um sanduíche [R$
12,00] de pernil às 2h da manhã e o balcão de atendimento não parava um
segundo. Várias pessoas esgueiravam-se nos balcões de mármores que margeam às
paredes do estabelecimento, praticamente não há cadeiras no Estadão, no BH
ainda têm. As pessoas comem como se estivessem em uma linha de montagem. Atentei
também que o paulistano consome muita pimenta in natura [servida em pequenas tigelas que ficam dispostas no
balcão], seja na coxinha [iguaria muito apreciada pela população], nos
sanduíches, nas refeições etc.
O sanduíche de pernil é
sanguinolento, é carne por carne, não há um tratamento no sentido de
especiarias e temperos. Ele é servido em um pão francês fresco cuja superfície
é transbordada pela megalomaníaca quantidade de carne dentro do pão. É
praticamente impossível não se lambuzar com a iguaria. Se a oferta de proteína é
em escala industrial, o consumo não seria diferente.
CHURRASCO GREGO
Não pensem que o consumo excessivo de
proteína animal que dá as condições materiais para a “revolução permanente” na economia
paulista seja privilégio dos segmentos abastados da população da zona sul.
Visitei a região do Brás e encarei o famigerado sanduíche grego [R$ 3,00]: um
pãozinho francês recheado com uma carne de procedência no mínimo duvidosa, mas
daí, fecha-se os olhos e mete o dente, além disso, as bactérias são termo
sensíveis e o sanduba é servido quente. Só não resolvi encarar os condimentos
que encontravam-se expostos ao sol o dia inteiro. Para não entalar-se com a
iguaria, o refresco era servido à vontade a partir daquelas máquinas que
convertem o sabor dos refrescos a partir de suas cores. O sanduíche é uma
delícia e compartilhei-o com convivas de toda sorte, mulheres com grandes
sacolas de compras, bolivianos [falarei deles com mais detalhes em outro texto]
que labutam na indústria têxtil das adjacências, crianças coloridas pelo sol e
pelas longas caminhadas sob a canícula do dia ao acompanhar suas mães às
compras.
A região do Brás foi a que encontrei
as coisas mais em conta na capital paulista. Para se ter uma ideia da
acessibilidade do lugar, uma garrafa de água mineral de 500ml que na Rua 25 de
março [maior centro de consumo popular do país] custa R$ 2,00, enquanto no Brás
a mesma custa R$ 1,00.
OS SUCOS
Falei outrora que, até agora, São
Paulo é o lugar do Brasil em que visitei onde se come melhor e os sucos são uma
prova cabal disso. Em Recife, é raro um estabelecimento alimentício que venda
suco direto da fruta, excetuando os sucos de laranja, os demais são todos
provenientes da polpas de frutas industrializadas. Na Pauliceia Desvairada,
fazendo alusão a como Mário de Andrade chamava sua cidade, há um misto de
seções de supermercado com quitandas nas cozinhas dos bares e lanchonetes. Em
todos que visitei, encontrei um engradado de inox depependurado pelo teto onde
encontramos toda sorte de frutas, em um amálgama de design indústrial com a
profussão colorida das frutas tropicais. Os sucos não levam açúcar. Tomei vários
sucos de laranja, abacaxi com hortelã etc., um reles suco de laranja em São
Paulo leva a “gordura” típica da cidade, são quase dez laranjas que o garçom
despeja em expremedores industriais de aço inox e quase podemos sentir o ácido
cítrico explodir de vigor em sua forma recém modificada. Algumas pedras de gelo
e pronto! Você bebe com a satisfação de que podemos usufruir da fruticultura
independente da Coca-Cola, do Mac Donald’s e das polpas industrializadas.
O FILÉ À PARMEGIANA
Em um dos meus últimos dias na capital
paulista, decidi encarar um filé à parmegiana que há algum tempo vinha me “namorando”
lá na BH Lanches. Pedi um e pasmen quando surgiu o prato. Um longo prato de
ágata onde tinha: uma porção geneorsa de arroz branco temperado com especiarias
[talvez salsa, coentro e outras coisas] muito bem preparado, uma porção de
batata frita [sequinhas] generosa e em outro recipiente de alumínio, duas
gigantescas fatias de filé “nadando em queijo” muçarela. Pensei “vamos lá, o
desafio é grande mas com a graça de Deus vamos vencê-lo”. Comi-o com satisfação
e sofreguidão, eis aí a tônica da culinária paulista. Creio que o excesso da
cozinha paulista seja em virtude de encarar a magnitude da cidade, o frio tanto
externo quanto interno das pessoas etecetera e tal. O prato custou-me R$ 21,00
com a sensação de missão cumprida. Ao cabo, alguns grãos de arroz no prato foi
o saudo da comilança.
Bati um prato feito no Centro,
defronte à Catedral da Sé em um sábado à noite. Na ocasião, estava acontecendo
o jogo entre Botafogo e Fluminense pela 31ª rodada do Campeonato Brasileiro da
Série A. O Botafogo estava perdendo o jogo por um a zero e a resenha
futebolística no bar/lanchonete estava candente. Apostas aconteciam em meio a
previsão de rebaixamento do Botafogo e do Palmeiras. Pedi o cardápio a um dos
garçons e o mesmo disse-me “não tem, o que você deseja?” respondi-o “veja-me um
PF de frango assado”. Sentei-me esperando o prato e, de chofre, surgiu outro
garçom de um ambiente subterrâneo com um prato fumegante onde podíamos ver em
uma espécie de “yin-yang” bem brasileiro, arroz e feijão separados em um prato de
louça mais fundo do que minhas olheiras que, aquela altura na capital paulista,
estavam mais fundas do que dois pratos de sopa. Em seguida, surgiu um prato de
salada: tomate, cebola e muita alface e, subsequentemente, outro prato com uma
porção generosa de frango assado na chapa. Para acompanhar, pimenta, farinha,
azeite, vinagre e sal. Comi com satisfação e no final, a sensação de praxe,
sofreguidão. Acredito que a mesa farta seja diretamente proporcional a
ansiedade da cidade. Custo total do PF, R$ 8,00 com direito a um cafezinho
cortesia da matriz – “perto do Centro, longe da cruz”.
__________
pós-graduando em Ciências Sociais pela UFRN
[1]
Disponível em: http://foihoje.blogspot.com.br/2013/11/notas-de-verao-sobre-impressoes-de.html
Acesso em 20 de nov. 2014. Além desta “Nota” existem mais três que podem ser
encontradas no mesmo endereço eletrônico.
Fonte das imagens: Google Imagens.
Fonte das imagens: Google Imagens.
Cabotino, o crítico da nova culinária metafisica no "Foi Hoje", seu blogger de sempre :P
ResponderExcluirTambém queremos ler sobre a Bienal de arte, Cabotino!! Ou não ficou sabendo que os artistas brasileiros eram todos pernambucanos? Sempre pernambucanos -falou a gringa com um pouco de raiva.