DOIS UNIDOS/ESTRADA DOS REMÉDIOS
Era início de uma noite de
sábado e a cidade quedava-se serenada àquela altura nas imediações da Benfica,
sob o mormaço do calor incrustado no asfalto e nos muros dos edifícios, a
cidade acordava para noite que, de uma só mão, trocava-se de dono: sai os
pedreiros e seus ajudantes, sai as empregadas domésticas etc., e entram os
garçons, vigilantes, prostitutas etc. O jogo do Santa Cruz na Arena Pernambuco
dava a tônica da resenha dos taxistas e dos torcedores com seus celulares - os
smartphones enterraram os radinhos de pilha.
As pessoas saíam do
trabalho e do supermercado. Cigarros na boca. Afã nos gestos. Sacolas de
compras nas mãos. A luz de mercúrio projetava-se, junto com um leitoso filete
de luz oriunda da acanhada lua que despontava entre os prédios, sobre os corpos
ávidos pelo sábado à noite – obrigações afora e ócio adentro.
O cigarro encontrava-se em
seus últimos momentos. As últimas tragadas sofridas no king size de filtro amarelo, por conta da iminência do ônibus que
assinalava-se depois do semáforo do cruzamento entre a Rua Benfica e a Real da
Torre.
Seu desejo? Ir o mais
rápido possível ao bairro da Tamarineira, para isso, estava disposto a pegar o
primeiro ônibus que rumasse para aquelas bandas. Eis que surge o coletivo cujo
itinerário dá título a esta narrativa. Não titubeou. Subiu no veículo que, além
do motorista e do cobrador, tinha três passageiros, entre eles, uma ex-affaire que fazia quase dois anos que
não a via.
Ela estava sentada no lado
esquerdo do ônibus. Uma expressão de cansaço marcava seu semblante que de
chofre converteu-se em surpresa ao vê-lo rodar a catraca. E agora? Passar
direto ou sentar ao lado dela? Eis a dúvida que pontuava o instante. Uma cidade
lança-nos em um milhão de dilemas o tempo inteiro: essa ou aquela rua?
Atravessar na faixa ou não? Aceitar ou não o panfleto oferecido? Essa ou aquela
cerveja? Fazer pouco caso ou reavivar sentimentos há tempos embotados? Optou
por reacender velhas chagas – se há perigo por que não lançar-se? Até porque
sempre há uma saída de emergência ou uma alavanca para acioná-la e, quando não
houver mais recursos de fuga, eis aí o ponto que deveremos alcançar.
Sentou ao lado dela e
perguntou segurando suas mãos que encontravam-se entrelaçadas ao regaço,
traduzindo uma certa tensão. “Tudo bem?”, lhe perguntou. “Sim, e contigo?”,
indagou ela. “Comigo vai tudo azul na América do Sul”. “Como vai o Felipe, já
está com o quê... Dois anos?”. “Não, faz dois anos em março”. “Ele é
pisciano?”. “Não, pior, é ariano. É do final de março e os arianos são bastante
irredutíveis e orgulhosos”. “Acho que ele puxou a mãe”. Ela sorriu em virtude
da inside joke que não interessa ao
leitor tampouco ao narrador. O sorriso com a piada desarmou um certo buquê de
tensão que envolvia o coletivo àquela altura da Av. José Bonifácio. A conversa
transcorreu pelas vias da praxes dos ditames sociais – profissão, casamento,
casa própria, projetos futuros etc. – mas, há uma coisa que o bom-tom social
não eclipsa: corpos que se conhecem transbordam o ódio, o acaso, o sábado, os
destinos individuais e, acima de tudo, quando encontram-se dividindo cadeiras em
um ônibus.
Ela saltou depois do
Carrefour levando consigo a promessa de um sábado à noite que sempre pode
descortinar-se a qualquer momento em que decidimos correr o risco de não fazer
pouco caso do outrora. Olhou-a distanciando-se aos poucos pela janela do
ônibus. Seu andar, o familiar trote de felina empertigada – a maternidade lhe
deu um elã de mulher e lhe acentuou as curvas nos quadris. Um verso de Álvaro
de Campos – heterônimo predileto dos dois – atravessou a consciência de ambos:
“Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira”.
Após o próximo semáforo.
Ele descobriu que apanhou o ônibus errado. O veículo não iria para a
Tamarineira. Resolveu descer para pegar o outro coletivo. Mesmo não servindo o
Dois Unidos/Estrada dos Remédios, há sempre outras estradas a palmilhar e
outros unidos a construir. E seguiu em frente sem a consciência do pretensioso
arremate desta narrativa que buscou uma moral da história para uma história sem
moral, sem coerência e sem destino, mesmo que o fim seja a Tamarineira.
***
Crédito da fotografia:
Saulo Diniz. Disponível em:
https://www.flickr.com/photos/saulobiu/9453217596/in/set-72157637787918053
Acesso em: 20 de nov. 2014
Eita, esses acasos do cotidiano que transbordam assim...
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