DOIS UNIDOS/ESTRADA DOS REMÉDIOS

20.11.14 Cabotino 1 Comentarios



Era início de uma noite de sábado e a cidade quedava-se serenada àquela altura nas imediações da Benfica, sob o mormaço do calor incrustado no asfalto e nos muros dos edifícios, a cidade acordava para noite que, de uma só mão, trocava-se de dono: sai os pedreiros e seus ajudantes, sai as empregadas domésticas etc., e entram os garçons, vigilantes, prostitutas etc. O jogo do Santa Cruz na Arena Pernambuco dava a tônica da resenha dos taxistas e dos torcedores com seus celulares - os smartphones enterraram os radinhos de pilha.

As pessoas saíam do trabalho e do supermercado. Cigarros na boca. Afã nos gestos. Sacolas de compras nas mãos. A luz de mercúrio projetava-se, junto com um leitoso filete de luz oriunda da acanhada lua que despontava entre os prédios, sobre os corpos ávidos pelo sábado à noite – obrigações afora e ócio adentro.

O cigarro encontrava-se em seus últimos momentos. As últimas tragadas sofridas no king size de filtro amarelo, por conta da iminência do ônibus que assinalava-se depois do semáforo do cruzamento entre a Rua Benfica e a Real da Torre.

Seu desejo? Ir o mais rápido possível ao bairro da Tamarineira, para isso, estava disposto a pegar o primeiro ônibus que rumasse para aquelas bandas. Eis que surge o coletivo cujo itinerário dá título a esta narrativa. Não titubeou. Subiu no veículo que, além do motorista e do cobrador, tinha três passageiros, entre eles, uma ex-affaire que fazia quase dois anos que não a via.

Ela estava sentada no lado esquerdo do ônibus. Uma expressão de cansaço marcava seu semblante que de chofre converteu-se em surpresa ao vê-lo rodar a catraca. E agora? Passar direto ou sentar ao lado dela? Eis a dúvida que pontuava o instante. Uma cidade lança-nos em um milhão de dilemas o tempo inteiro: essa ou aquela rua? Atravessar na faixa ou não? Aceitar ou não o panfleto oferecido? Essa ou aquela cerveja? Fazer pouco caso ou reavivar sentimentos há tempos embotados? Optou por reacender velhas chagas – se há perigo por que não lançar-se? Até porque sempre há uma saída de emergência ou uma alavanca para acioná-la e, quando não houver mais recursos de fuga, eis aí o ponto que deveremos alcançar.

Sentou ao lado dela e perguntou segurando suas mãos que encontravam-se entrelaçadas ao regaço, traduzindo uma certa tensão. “Tudo bem?”, lhe perguntou. “Sim, e contigo?”, indagou ela. “Comigo vai tudo azul na América do Sul”. “Como vai o Felipe, já está com o quê... Dois anos?”. “Não, faz dois anos em março”. “Ele é pisciano?”. “Não, pior, é ariano. É do final de março e os arianos são bastante irredutíveis e orgulhosos”. “Acho que ele puxou a mãe”. Ela sorriu em virtude da inside joke que não interessa ao leitor tampouco ao narrador. O sorriso com a piada desarmou um certo buquê de tensão que envolvia o coletivo àquela altura da Av. José Bonifácio. A conversa transcorreu pelas vias da praxes dos ditames sociais – profissão, casamento, casa própria, projetos futuros etc. – mas, há uma coisa que o bom-tom social não eclipsa: corpos que se conhecem transbordam o ódio, o acaso, o sábado, os destinos individuais e, acima de tudo, quando encontram-se dividindo cadeiras em um ônibus.

Ela saltou depois do Carrefour levando consigo a promessa de um sábado à noite que sempre pode descortinar-se a qualquer momento em que decidimos correr o risco de não fazer pouco caso do outrora. Olhou-a distanciando-se aos poucos pela janela do ônibus. Seu andar, o familiar trote de felina empertigada – a maternidade lhe deu um elã de mulher e lhe acentuou as curvas nos quadris. Um verso de Álvaro de Campos – heterônimo predileto dos dois – atravessou a consciência de ambos: “Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira”.

Após o próximo semáforo. Ele descobriu que apanhou o ônibus errado. O veículo não iria para a Tamarineira. Resolveu descer para pegar o outro coletivo. Mesmo não servindo o Dois Unidos/Estrada dos Remédios, há sempre outras estradas a palmilhar e outros unidos a construir. E seguiu em frente sem a consciência do pretensioso arremate desta narrativa que buscou uma moral da história para uma história sem moral, sem coerência e sem destino, mesmo que o fim seja a Tamarineira.

***
Crédito da fotografia: Saulo Diniz. Disponível em:
https://www.flickr.com/photos/saulobiu/9453217596/in/set-72157637787918053
Acesso em: 20 de nov. 2014

Um comentário: