O relato

10.7.13 Cabotino 0 Comentarios


O que me salvou de início foi uma caixa de charutos Cohiba e uma garrafa pet de Coca Cola de dois litros, agarrei-me a ambos e segui à deriva através do peso da madeira envazada de ar da iguaria cubana e a leveza da embalagem em polietileno do refrigerante americano, fui salvo por estes dois objetos: um Cuba Libre sui generis. Tudo o que lembro antes do “acidente” com o nosso navio, não sei o que houve e pouco importa, era que eu estava em meu quarto fumando e lendo mais uma vez, o Poema Sujo, justamente neste trecho que tenho comigo na memória – “meu corpo de 1,70m que é meu tamanho no mundo, meu corpo feito de água e cinza que me faz olhar Andrômeda, Sirius, Mercúrio e me sentir misturado a toda essa massa de hidrogênio e hélio que se desintegra e reintegra sem se saber pra quê” –. Ponderei: Deus me abandonou em meio ao Nada no lugar mais ermo do mundo, emergido a 11 km oceano acima, 11 km não assusta ninguém, mas se eu disser: 11 mil metros! Aí a coisa toma outra conotação, pois é, porque Ele não me abandonou em meio ao Carnaval de Veneza entre aquelas águas do cólera e entre uma “Cleópatra” e uma “Lucrécia Borgia” embalado em glitters, máscaras, suores, odores, lança perfumes etc.? Ou porque não me abandonou em um bulevar parisiense as margens do Sena, aquele rio que transborda sabedoria e esgoto, tomando um vinho com uma amante francesa e discutindo as desventuras de Julien Sorel ou falando das perversidades e taras do Marques de Sade? Mas não, resolveu pôr-me aqui nesta região do mundo em que não adiante nem gritos, nem sussurros. Estou emerso sobre os atritos das placas tectônicas Euro-asiática e a do Pacífico, sob mim há abalos sísmicos que deixaria a Escala Richter envergonhada, seu ponteiro enlouqueceria sobre estas águas, nelas há os arrotos de tudo o que há de mais primitivo no mundo, os vulcões expelindo o seu magma como uma ejaculação de fogo e enxofre lutando permanentemente com águas que não deixa este fogo se materializar, sobe/desce, acende/apaga, estende/distende... E a terra abre-se sob mim a 11 mil metros abaixo e tenta tragar-me de qualquer maneira, mas estou com a caixa de Cohiba e a Garrafa de Coca Cola, Fidel e o Tio Sam estão comigo nestas águas longínquas, sem Havana e sem Miami, sem ron e sem bife. Pois é, cada um tem o seu Virgílio que merece e, assim como Dante estou neste mar infernal e sem esperança de encontrar Jesus, Maomé, Beatriz. Pensei: Estou no Círculo de Fogo do Pacífico a vários quilômetros de lugar nenhum, talvez a terra mais próxima seja o Japão, China, Austrália, Hawaii, Nova Zelândia, México! Meu Deus a quem rogar nestes momentos em que o mar encerra-se junto com a noite sobre mim? Gostaria de um João Batista aqui e que me batizasse nestas águas e me tornasse um novo Messias, seria o meu próprio salvador, não iria de jeito nenhum transformar estas águas em vinho, as uvas não merecem tal crime, nem tampouco morrer pela humanidade, não seria tão idiota. Estas águas estão condenadas a nos confundir, estão podres por dentro e por fora, é suja, escura, profunda... Nelas Narciso sobreviveria calmamente, nelas nenhum reflexo é possível – o que não é espelho é feio –, nelas há o céu com seu silêncio de chumbo e sua eterna indiferença, ah! O silêncio destes espaços e tempos infinitos apavora-me!

Continua...

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