O relato IV

26.7.13 Cabotino 0 Comentarios


Continuação...

Indaguei: somos os argonautas da terra, desterrados de nossa própria condição seca, mineral, somos água por dentro e por fora, a pedra que carregamos até o alto da colina diariamente é uma pedra de água, informe, movediça, alagadiça que nos envolve e adentra nossos corpos e depois é execrado por ele através do suor do trabalho, do sexo, do lazer, das lágrimas, do sangue... Pensei: se ao menos chovesse agora eu teria alguma noção espacial, os ventos e as ondas, mas não, a chuva é um privilégio que o céu não me concedeu, nem tampouco o sol, sou filho dos dias nublados, cinza. Lembro-me que desenhava um sol quando era criança para haver estio, mas a chuva molhava-o e borrava o meu desenho assim como o meu desejo por luz e quando estava ao sol ele se escondia ou fustigava-me com seus raios impetuosos a queimar minhas asas de cera. Meu lugar no mundo sempre foi entre o sol e a chuva, no entreato do seco com o molhado, do quente com o úmido. Talvez por isso eu não goste do entardecer, as trevas engolindo a luz é uma imagem penosa para mim, sempre gostei de dormir durante o ocaso e acordar somente com a noite fechada – noite adentro vida afora –. Sempre gostei da sensação de jantar como se fosse o café da manhã e, em seguida, partir para a vida, para a noite com aquela fome de tudo. Minha energia vinha dos filamentos de tungstênio das lâmpadas de mercúrio, com elas eu encarava a noite tête-à-tête, eram os raios que entrevam em minha pele como combustível para enfrentar as trevas, a boemia e a vida... Agora não há manhã, não há tarde, não há ocaso nem tampouco noite diante destas águas, nem sol nem luz de mercúrio – “Eu entendo a noite como um oceano / Que banha de sombras o mundo de sol” – Pensei: estou preso aqui, emerso sobre mim e sobre estas águas, como se estivesse preso em um mastro e com cera nos ouvidos e incapacitado de ouvir qualquer canto de sereia, incapaz de ser conduzido para qualquer ilha onde uma Calypso ou Circe me aguarda com seus ardis terrenos e extraterrenos. Acredito que cometi algum crime contra o filho do Deus do mar e devo também ter contrariado o Deus do vento, pois ambos viraram as costas para mim, aquele quer vazar meu olho e este lança-me ventos em círculos e que me faz dar voltas em torno de mim mesmo como se estivesse em uma nau com um único remo. Pensei: todo homem busca a sua Ítaca perdida em meio a tudo ele grita, chama, berra, mas o silêncio impera e nestas águas ele é profundo, escuro –“Que voz vem no som das ondas / Que não é a voz do mar? / É a voz de alguém que nos fala, / Mas que, se escutarmos, cala”. Estas ondas não dizem nada assim como estas águas e Ítaca está cada vez mais longe no tempo e no espaço, talvez a matéria líquida que engoli nestas águas esteja me deixando com vertigem, dormente, sei lá... – “O eco de um tempo distante vem magicamente pela areia / E tudo é verde e submarino / E ninguém nos mostrou a terra / E ninguém sabe onde ou porquê / Mas algo encara e algo tenta / E começa a subir em direção à luz” –. Sim, agora lembro-me da imagem que começa a vim à luz como a lava à 11 mil metros abaixo de mim com todo o seu calor, seu som e sua fúria. É a lembrança de minha “Penélope” irradiando meu corpo, fazendo-me borbulhar dos artelhos ao cerebelo. Preciso voltar para casa, pois minha “Penélope” espera-me com seus teares. A odisseia de qualquer homem, seja ela seca ou molhada, é a viagem de volta para casa. Esperem aí, uma garrafa vem boiando em minha direção e há dentro dela um pedaço de papel, abro-a e leio o que está escrito: “o que me salvou de início foi uma caixa de charutos Cohiba e uma garrafa pet de Coca Cola de dois litros...”

Fim.

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