Pokémon Go: a excitação encapsulada

12.8.16 Cabotino 0 Comentarios


por Renato K. Silva, doutorando em ciências sociais pela UFRN.

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De antemão, não será objetivo deste texto apontar eventuais relações entre o jogo eletrônico Pokémon Go com instituições supranacionais de vigilância para fins de controle social; tampouco associá-lo a mais um dos inúmeros braços da indústria cultura que visa a alienação dos usuários. Não temos subsídios para direcionarmos nossa análise em tais direções. Ao invés disso, iremos nos ater a outros elementos.

É consenso afirmar que as civilizações são formadas a partir de um crescente, contínuo e cambiante controle das tensões sociais entre os seres humanos. Essa é uma tese contratualista que nos remete especialmente a três autores: Thomas Hobbes, Freud e Norbert Elias. 

Não é de hoje que controle das tensões extrapolou o convívio social – do cotidiano – e ganhou forma em outras configurações sociais, como, por exemplo: nos esportes. A título de demonstração do argumento basta pensarmos no caso do pugilismo que, desde sua origem, passou por inúmeras modificações no tocante a um equilíbrio de forças cada vez mais justo entre as partes: a divisão por categorias de peso, uso de luvas, proibição de golpe baixo etc. 

E o processo de racionalização das atividades humanas em direção a um justo equilíbrio entre as partes é uma constante na cultura humana, sobretudo, nas atividades lúdicas. Esse movimento faz parte do processo civilizador, para utilizarmos a expressão do sociólogo judeu-alemão, Norbert Elias. 

Contudo, o processo civilizador tende a promover a especialização, racionalização e profissionalização das atividades humanas, como foi o caso dos esportes que, no final do século XIX, sofreram profundas modificações em suas estruturas; tais modificações foram empreendidas pelos ingleses.

Isto é, os ingleses – inspirados em sua cultura do gentleman e do fair play – inseriram inúmeras regras nos esportes modernos. Com isso, os esportes ganharam em equilíbrio e perderam em ludicidade. Por exemplo: a 11ª regra do futebol – o impedimento – beneficiou a defesa que era vazada constantemente; por outro lado, os gols ficaram cada vez mais escassos à medida em que a regra do impedimento foi sendo alterada no decorrer do tempo: sempre visando um maior equilíbrio entre ataque e defesa. Não custa frisarmos que este equilíbrio é sempre precário, pois o processo civilizador não é uma dimensão positivista e evolucionista, como bem sabemos, por exemplo, nas tensões em relação à aplicação da lei do impedimento.

POKÉMON E O PROCESSO CIVILIZADOR 

No início dos anos 2000, constatei um certo movimento em direção ao processo civilizador sendo inserido nos desenhos/quadrinhos mangás japoneses. Até então, os desenhos japoneses eram pautados no conflito – luta corporal e espiritual – entre os personagens. Por exemplo: Cavaleiros do Zodíaco, Yu Yu Hakusho, Dragon Ball e outros. 

Com o advento de Pokémon, no final das década de 1990, há uma nova inflexão: os combates deixaram de ser corporal e tornam-se intermediados por um terceiro elemento, no caso, os pokémons. Em seguida, uma plêiade de desenhos passaram a utilizar deste expediente: um terceiro elemento vem à tona para protagonizar a ação junto com os personagens “humanos”. Vide o caso de Sakura Cardcaptor, Beyblader, Yu-Gi-Oh! O controle das tensões estava agora distribuído, amplamente, com o terceiro elemento.

Neste sentido, as práticas imitativas que emulavam os conflitos entre os personagens, por exemplo, em Cavaleiros do Zodíaco, onde as crianças/fãs se identificavam com o cavaleiro que nutria mais intimidade, sai de cena, e entra a abstrata pokebola e os também abstratos pokémons. Ou seja, com Pokémon surge uma nova configuração nas brincadeiras dos fãs: há uma queda do elemento lúdico/corporal e um aumento da prática racionalizada/quantitativa; o que importa agora é acumular o maior número possível de pokémons

Os anos se passaram e o desenho ficou, digamos assim, em stand by para a geração dos anos 2000 que, a essa altura, está chegando ou ultrapassou à casa dos 30 anos. Em junho do corrente, três empresas [Niantic, a Nintendo e a The Pokémon Company] lançaram para as plataformas iOS e Android, o jogo eletrônico coqueluche do momento: Pokémon Go


O jogo é pautado numa nova tecnologia chamada: VR virtual reality, ou seja, de realidade aumentada, onde há uma interação e amálgama entre a realidade objetiva e a realidade virtual por meio dos GPSs e câmeras dos smartphones dos usuários que, por conseguinte, podem ir a campo em busca dos bichinhos virtuais distribuídos aleatoriamente pelo perímetro das cidades.
 
 
Logo marca do Pokémon Go

Essa dimensão que imbrica a realidade virtual com a objetiva está causando inúmeros imbróglios e pode, eventualmente, levar os usuários a situações constrangedoras ou de ameaça à própria vida. Por exemplo: imaginemos um jovem negro que esteja jogando Pokémon Go, ele está à caça de pokémons em um bairro de elite, passando inúmeras vezes no mesmo local, certamente a vida dele estará em risco. Ou, alguém que esteja caçando pokémons num cemitério, numa igreja, fórum, tribunal... Ou como um jovem estadunidense que caçou um pokémon com características tóxicas chamado: Koffing, nas intersecções do Memorial do Holocausto.  

Em cima do argumento aventado até aqui, Pokémon Go traz uma novidade em relação à sua versão televisiva: o corpo do fã [agora também usuário] entra em cena. Desta vez, ele agora pode correr sua cidade à procura dos pokémons. Porém, algo ainda permanece da versão do desenho animado: a lógica da acumulação em detrimento da atividade lúdica gratuita.  

Portanto, Pokémon Go reproduz uma lógica inerente ao processo civilizador: aumenta-se a racionalização do jogo pautado no acúmulo dos pontos [são 150 pokémons] e, com isso, perde-se de vista a atividade fim da própria brincadeira que é, ao cabo, a não finalidade. Não nos surpreenderemos se daqui a pouco surgirem versões pagas do aplicativo, campeonatos nacionais e internacionais, profissionalização e especialização dos usuários que passarão a se chamar algo do tipo: PokePro, Master Go, ou coisa que o valha. 

Apesar de toda a agitação sonambúlica dos usuários correndo atrás de pokémons nas grandes e médias cidades do mundo, um dado contínua renitente: a excitação proveniente do jogo não é senão uma capsula de isolamento, em ambas realidades.

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