Chuva de containers de Coca-Colas II

12.8.16 Cabotino 0 Comentarios


Chuva de containers é a quinta faixa do disco Gessinger, Licks & Maltz (GLM, 1992) da banda gaúcha, Engenheiros do Hawaii. A canção retoma alguns pontos discutidos anteriormente no diálogo entre Geração Coca-Cola [Legião Urbana, 1985] e a canção Alegria, Alegria [Caetano Veloso, 1967]. 


Capa do último disco [1992] de estúdio dos Engenheiros com a sua formação 
considerada clássica: Humberto Gessinger, Augusto Licks e Carlos Maltz.

Desta vez, iremos traçar brevemente um paralelo entre Chuva de containers e Panis et Circense [Caetano Veloso, 1967] por acreditar que há pontos de ruptura entre as duas canções e entre as duas interfaces geracionais: Tropicália e Rock Nacional dos anos 1980-90. Essas rupturas são sobretudo no tocante à discussão entre a modernidade na periferia do capitalismo, o Brasil, e como esta modernidade dialoga com os ícones da indústria cultural oriundos do centro do capitalismo, Europa e EUA.

Chuva de containers já começa aludindo a uma prática sócio-política muito presente e originária [entranhada no imaginário] do mundo latino: “pão e circo” [Panis et circense]. Só que ao invés do pragmatismo político do pão [comida] e circo [espetáculo] às massas, a canção traz um viés mais metalinguístico e policlassista, lembrando um pouco do conteúdo de Geração Coca-Cola, só que ao invés da estética punk, a canção dos gaúchos é mais polissêmica e progressiva.

“Falta pão/ (o pão nosso de cada dia)/ Sobra pão/ (o pão que o diabo amassou)  Falta circo (no mundo que nos cerca)/ Sobra circo (é só pular a cerca)/ Sobra circo... falta pão/ Falta circo... sobra pão”

Ao que tudo indica, no decênio de 1990, nossa recepção e transmissão sonora de maior espectro, o Rock Nacional, são impregnadas da linguagem publicitária e da tevê. E o modelo importado é proveniente da indústria cultural estadunidense, sobretudo.  

Tudo isso nos é apresentado, na canção, por meio de um grande paroxismo policlassista de pão e circo, que vão: do biscoito fino[1] consumido por nossas elites ao sonho terceiro-mundista/latino-americano de ir lavar pratos em Miami como um American Latin way of life.  Isto é, há mais de três décadas que Miami é o Latin American Dream tanto de uma elite que gritava e grita “ame-o, ou deixe-o” quanto dos sonhadores do green card a qualquer custo e sacrifício. 

A conjuntura da canção é atual. Parece que o Brasil e a América Latina sofrem de um particular oximoro no tocante às condições estruturantes de suas respectivas sociedades, movimento imóvel:

“Triste vocação/ A nossa elite burra se empanturra de biscoito fino/ Triste sina, América Latina/ Não escaparemos do vexame, não/ Nós não caberemos todos em Miami-ami/ Ame-o ou deixe-o/ Ame-o ou deixe-o”

Desta vez a crítica ao colonialismo das mentes, via o mercado de bens simbólicos agora eminentemente ianque, despejado indistintamente no mercado brasileiro, é notoriamente anti-antropofágica na fatura da letra. Não há mais o brado proto-punk do: vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês. Ao invés disso, há uma recepção cultural sem ruminação:
“Somos todos passageiros clandestinos dos destinos da nação/ Triste destino, engolir sem mastigar/ Chuva de containers/ Entertainers no ar... Noir”

A canção dos Engenheiros denuncia a prática da absolvição, indiscriminada, dos elementos culturais provenientes do centro do capitalismo. Não há mais a regurgitação oswaldiana/tropicalista. O consumo [não mais usufruto ou fruição cultural], agora, é sem peias, sem paladar e sem mastigar. O bolo alimentar [lixo/entertainers] cai na proporção que a gravidade atrai, para o país das margens plácidas, os containers de Coca-Colas. 

Tão anos 1990 quanto o rombo da Camada de Ozônio e as chuvas ácidas, assim era a pilha de lixo/entertainers acumuladas no colosso verde amarelo, abruptamente permissível ao mercado externo do período da reabertura política e, no limite da hiperinflação, nos anos Collor:

“Ouviram do Ipiranga às margens plácidas/ Os trovões da chuva ácida/ A acidez oceânica de uma laranja mecânica”

O lixo/entretenimento do USA de 9 às 6 chega agora pelo ar – chuva de containers – e também pelo “ar” dos raios catódicos da publicidade e da tevê numa estética opaca, noir, anti-solar e anti-tropicalista. Diferente do Brasil da segunda metade dos anos 1960 onde a canção Panis et circense veio à superfície, o Brasil de Chuva de containers traz uma sociedade também bestificada diante da tevê e da publicidade, como em Panis et circense:

  Mandei plantar /Folhas de sonho no jardim do solar/ As folhas sabem procurar pelo sol/ E as raízes procurar, procurar/ Mas as pessoas na sala de jantar/ São ocupadas em nascer e morrer”

O que difere é que Chuva de containers traz uma sociedade [brasileira] encalacrada num jogo que transcende o “pão e circo”, esse jogo está presente na canção de Caetano, e no lugar deste encurralamento, a música dos gaúchos traz uma aporia: o que fazer quando falta o pão e o circo

Na canção de Caetano há ainda as folhas a procurar pelo sol e as raízes. Ou seja, na canção dos Engenheiros não há mais a esperança ambivalente entre o alto [Centro-sol-novo-moderno] e as profundezas [Periferia-raízes-arcaico-tradição], como na canção de Caetano. Neste sentido, o Rock Nacional de 1980 e meados de 1990 perdeu do seu horizonte aquele diálogo tão presente nas vanguardas anteriores: o Brasil arcaico com o moderno. 

Humberto Gessinger, Augusto Licks e Carlos Maltz

Por fim, o Rock Nacional do período 1980-90, representado nas duas músicas trazidas até aqui, anunciava, a partir da ruptura do diálogo entre o arcaico e o moderno em nossas vanguardas e em nossa música, o “fim” da canção. Ou seja, quando o elemento “arcaico”, plasmado pela tradição [local], sai de cena, restando apenas o elemento modernizador [de fora], abra-se espaço na terra-arrasada pela publicidade, aos influxos da negatividade afirmativa, como são os casos de Geração Coca-Cola e Chuva de containers.



[1] A referência à frase de Oswald de Andrade é quase inevitável: “A massa ainda comerá o biscoito fino que fabrico”

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