Chuva de containers de Coca-Colas II
Chuva de containers é a
quinta faixa do disco Gessinger, Licks &
Maltz (GLM, 1992) da banda gaúcha, Engenheiros do Hawaii. A canção retoma
alguns pontos discutidos anteriormente no diálogo entre Geração Coca-Cola [Legião Urbana, 1985] e a canção Alegria, Alegria [Caetano Veloso, 1967].
Capa do último disco [1992] de
estúdio dos Engenheiros com a sua formação
considerada clássica: Humberto
Gessinger, Augusto Licks e Carlos Maltz.
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Desta
vez, iremos traçar brevemente um paralelo entre Chuva de containers e Panis
et Circense [Caetano Veloso, 1967] por acreditar que há pontos de ruptura
entre as duas canções e entre as duas interfaces geracionais: Tropicália e Rock
Nacional dos anos 1980-90. Essas rupturas são sobretudo no tocante à discussão
entre a modernidade na periferia do capitalismo, o Brasil, e como esta modernidade
dialoga com os ícones da indústria cultural oriundos do centro do capitalismo,
Europa e EUA.
Chuva de containers já
começa aludindo a uma prática sócio-política muito presente e originária [entranhada
no imaginário] do mundo latino: “pão e circo” [Panis et circense]. Só que ao invés do pragmatismo político do pão
[comida] e circo [espetáculo] às massas, a canção traz um viés mais
metalinguístico e policlassista, lembrando um pouco do conteúdo de Geração Coca-Cola,
só que ao invés da estética punk, a canção dos gaúchos é mais polissêmica e
progressiva.
“Falta
pão/ (o pão nosso de cada dia)/ Sobra pão/ (o pão que o diabo amassou) Falta circo (no mundo que nos cerca)/ Sobra
circo (é só pular a cerca)/ Sobra circo... falta pão/ Falta circo... sobra pão”
Ao que
tudo indica, no decênio de 1990, nossa recepção e transmissão sonora de maior
espectro, o Rock Nacional, são impregnadas da linguagem publicitária e da tevê.
E o modelo importado é proveniente da indústria cultural estadunidense,
sobretudo.
Tudo
isso nos é apresentado, na canção, por meio de um grande paroxismo
policlassista de pão e circo, que
vão: do biscoito fino[1]
consumido por nossas elites ao sonho terceiro-mundista/latino-americano de ir lavar pratos em Miami como um American Latin way of life. Isto é, há mais de três décadas que Miami é o Latin American Dream tanto de uma elite
que gritava e grita “ame-o, ou deixe-o” quanto dos sonhadores do green card a qualquer custo e sacrifício.
A
conjuntura da canção é atual. Parece que o Brasil e a América Latina sofrem de
um particular oximoro no tocante às condições estruturantes de suas respectivas
sociedades, movimento imóvel:
“Triste
vocação/ A nossa elite burra se empanturra de biscoito fino/ Triste sina,
América Latina/ Não escaparemos do vexame, não/ Nós não caberemos todos em
Miami-ami/ Ame-o ou deixe-o/ Ame-o ou deixe-o”
Desta
vez a crítica ao colonialismo das mentes, via o mercado de bens simbólicos agora
eminentemente ianque, despejado indistintamente no mercado brasileiro, é notoriamente
anti-antropofágica na fatura da letra. Não há mais o brado proto-punk do: vamos cuspir de volta o lixo em cima de
vocês. Ao invés disso, há uma recepção cultural sem ruminação:
“Somos
todos passageiros clandestinos dos destinos da nação/ Triste destino, engolir
sem mastigar/ Chuva de containers/ Entertainers no ar... Noir”
A
canção dos Engenheiros denuncia a prática da absolvição, indiscriminada, dos
elementos culturais provenientes do centro do capitalismo. Não há mais a regurgitação oswaldiana/tropicalista. O
consumo [não mais usufruto ou fruição cultural], agora, é sem peias, sem
paladar e sem mastigar. O bolo alimentar [lixo/entertainers] cai na proporção que
a gravidade atrai, para o país das
margens plácidas, os containers de Coca-Colas.
Tão
anos 1990 quanto o rombo da Camada de Ozônio e as chuvas ácidas, assim era a
pilha de lixo/entertainers acumuladas
no colosso verde amarelo, abruptamente permissível ao mercado externo do
período da reabertura política e, no limite da hiperinflação, nos anos Collor:
“Ouviram
do Ipiranga às margens plácidas/ Os trovões da chuva ácida/ A acidez oceânica
de uma laranja mecânica”
O lixo/entretenimento do USA de 9 às 6 chega agora pelo ar – chuva de containers – e também pelo “ar”
dos raios catódicos da publicidade e da tevê numa estética opaca, noir, anti-solar e anti-tropicalista. Diferente
do Brasil da segunda metade dos anos 1960 onde a canção Panis et circense veio à superfície, o Brasil de Chuva de containers traz uma sociedade também
bestificada diante da tevê e da publicidade, como em Panis et circense:
Mandei plantar /Folhas de sonho no jardim do
solar/ As folhas sabem procurar pelo sol/ E as raízes procurar, procurar/ Mas
as pessoas na sala de jantar/ São ocupadas em nascer e morrer”
O que
difere é que Chuva de containers traz
uma sociedade [brasileira] encalacrada num jogo que transcende o “pão e circo”,
esse jogo está presente na canção de Caetano, e no lugar deste encurralamento,
a música dos gaúchos traz uma aporia: o que fazer quando falta o pão e o circo?
Na
canção de Caetano há ainda as folhas a
procurar pelo sol e as raízes. Ou seja, na canção dos Engenheiros não há
mais a esperança ambivalente entre o alto
[Centro-sol-novo-moderno] e as profundezas
[Periferia-raízes-arcaico-tradição], como na canção de Caetano. Neste sentido,
o Rock Nacional de 1980 e meados de 1990 perdeu do seu horizonte aquele diálogo
tão presente nas vanguardas anteriores: o Brasil arcaico com o moderno.
Humberto Gessinger, Augusto Licks e Carlos Maltz |
Por
fim, o Rock Nacional do período 1980-90, representado nas duas músicas trazidas
até aqui, anunciava, a partir da ruptura do diálogo entre o arcaico e o moderno
em nossas vanguardas e em nossa música, o “fim” da canção. Ou seja, quando o
elemento “arcaico”, plasmado pela tradição [local], sai de cena, restando
apenas o elemento modernizador [de fora], abra-se espaço na terra-arrasada pela
publicidade, aos influxos da negatividade
afirmativa, como são os casos de Geração
Coca-Cola e Chuva de containers.
[1] A
referência à frase de Oswald de Andrade é quase inevitável: “A massa ainda comerá
o biscoito fino que fabrico”
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