Chuva de containers de Coca-Colas I

12.8.16 Cabotino 0 Comentarios


Geração Coca-Cola é a sexta faixa do primeiro disco da Legião Urbana (Legião Urbana, 1985). A música é uma das canções oriundas do espólio da lendária banda de punk-rock brasiliense, Aborto Elétrico. E a música carrega a pegada e a estética do punk: simplicidade [três acordes], versos claros e direitos, linguagem chula [cuspir], referências ao cotidiano [tevê, escola, Coca-Cola], ausência de metáforas ou metonímias etc.

“Quando nascemos fomos programados /A receber o que vocês /Nos empurraram com os enlatados dos USA, de 9 às 6 /Desde pequenos nós comemos lixo/ Comercial e industrial”

De início, Geração Coca-Cola traz em seu seio uma ambivalência típica da produção simbólica de países da periferia do capitalismo, como o Brasil: critica-se o imperialismo cultural dos EUA, no conteúdo da letra; ao passo que o vetor formal da crítica é uma linguagem sonora símbolo do colonialismo norte-americano: rock.

“Mas agora chegou nossa vez/ Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês”

Talvez o dado distintivo do rock produzido no Brasil durante a década de 1980 e meados de 1990 seja: pela primeira vez ele assume que é nacional e que faz um arremedo, abrasileirado, do que é produzido nos EUA e Reino Unido. O rock torna-se Made in Brazil. Não obstante, os letristas de destaque desta época conseguiram formatar uma forma de compor rock em português. Nomes como: Antônio Cícero, Humberto Gessinger, Marina, Cazuza firmaram suas carreiras compondo e cantando rock na língua de Fernando Pessoa. 


 
Capa do 1º disco da Legião. Na imagem, podemos detectar a ambivalência do modernismo brasileiro. Acima, imagem do Congresso Nacional. Abaixo, imagem de um índio.

Geração Coca-Cola talvez seja o estertor de uma das facetas do projeto iniciado com a Tropicália: o lixo da indústria cultural dos países centrais sendo ressignificado na periferia do capitalismo. 

Isto é, na música em destaque, a modernidade periférica vem à tona através de imagens publicitariamente violentas, que são plasmadas na canção e cuspidas diretamente para o ouvinte. Geração Coca-Cola não traz as imagens cinematográficas de um certo encantamento cotidiano com os símbolos da modernidade capitalista, como, por exemplo: na balada tropicalista Alegria, Alegria: 

“Eu tomo uma Coca-Cola/ Ela pensa em casamento/ E uma canção me consola/ Eu vou”
Ao que parece, a aliança tríplice entre a Tropicália, o Cinema Novo e o Marginal sai de cena, durante a década de 1980, e em seu lugar surge o Rock Nacional recalcado no decalque norte-americano, e sem antropofagia, somado a uma linguagem publicitária eminentemente direta. Em uma palavra: a tevê suplanta o cinema e dá régua e compasso ao rock realizado durante a [mal]dita década perdida. A década dos filhos da “Revolução 1964” que estava pedindo passagem:

“Somos os filhos da revolução/ Somos burgueses sem religião/ Somos o futuro da nação”

Neste sentido, podemos afirmar que a geração musical do decênio de 1980-90 carrega consigo um paradoxo: erigiram-se sobre uma negatividade afirmativa. Isto é, nega-se os influxos da cultura americana despejados na economia brasileira no período da reabertura democrática, na fatura das letras; ao passo que afirma-se musicalmente nas influências anglo-saxãs – até pouco tempo símbolo do imperialismo cultural[1] – através da sonoridade rock. 

Este paradoxo pode ser resumido também no descompasso de uma economia cambiante entre o arcaico e o moderno, o Brasil, em sintonia com a modernidade dos países centrais, representada no rock. É um dado típico da modernidade periférica: ser contemporâneo do não-contemporâneo. 

Assim, neste diapasão, as vanguardas artísticas nacionais durante o século XX, da Semana de 1922 à Tropicália, viveram da dialética entre o local e o universal, ora alimentando-se dos elementos nacionais – desde 1922 desrecalcados – em forte diálogo-influência-reinvenção com as produções simbólicas sobretudo da Europa e EUA. E no centro desta lógica, sobreveio a estética antropofágica, especialmente nas duas vanguardas supracitadas. 

 
Da esquerda pra direita: Renato Russo, Dado Villa-Lobos [segundo plano], Marcelo Bonfá e Renato Rocha.

Portanto, seja na Semana de 1922 quanto na Tropicália, as bases simbólicas foram fincadas no conflito e convivência entre um Brasil arcaico – patriarcal, rural, não capitalista, pré-replicano – com os elementos modernizantes – urbano, industrial, capitalista, burguês.
Porém, a partir da década de 1980, com a geração do Rock Nacional, um dado novo se instala nesta relação entre os brasis arcaico e moderno: não há mais espaço para o Brasil profundo, ou arcaico. O urbano suplanta o rural e transforma-o em epifenômeno.


[1] Lembrar o fatídico episódio da Passeata contra a guitarra elétrica, no Rio, em 1967.

0 comentários: