Sob o signo de Susan Sontag

7.12.15 Cabotino 0 Comentarios


 por RENATO K. SILVA


Os Diários (1947-1963) da escritora e ensaísta norte-americana descendente de judeus, Susan Sontag (1933-2004), lançados no Brasil pela Companhia das Letras (2009) com a tradução de Rubens Figueiredo, nos dão uma mostra dos anos de formação da autora de A doença como metáfora

São páginas marcantes que narram os primeiros anos de juventude até o início da vida adulta. Neste ínterim: a descoberta do sexo; da literatura clássica; do cinema; do teatro; da filosofia e, acima de tudo, dos momentos político-sociais que estavam perpassando o mundo ocidental naqueles anos do pós Segunda Guerra.

E é neste contexto que S. Sontag desperta para o mundo do espírito, das humanidades, em um período que em breve anunciaria a revolução comportamental dos anos 1960, justamente em um dos seus epicentros: a Califórnia. 

É pertinente a leitura dos Diários sobretudo para quem tem interesse na crítica genética de análises biográficas, nos estudos culturais, pelo gênero memorialístico – tão escasso na literatura brasileira –, ou simplesmente por interesse estético, pois são relatos confessionais dignos de um espírito em plena ebulição.

Susan Sontag fez parte da segunda geração de judeus que migraram para os EUA, especialmente no final do século XIX, nas inúmeras diásporas judaicas que miraram o outro lado do Atlântico para, como se dizia no século passado, “fazer a América”. Desta forma, se viva, ela estaria na mesma faixa etária de um Woody Allen, ou Philip Roth, artistas contemporâneos e da mesma origem religiosa da escritora e ensaísta. 

Com efeito, Susan Sontag nunca fora caudatária de nenhum credo religioso ou assecla ferrenha de qualquer ideologia política. Neste sentido, os Diários dão uma mostra de como ela tinha um interesse intelectual múltiplo. Era uma espécie de camelão do reino do simbólico. Passava da Flauta Mágica de Mozart a um romance de Jean Genet como quem troca de roupa. 

Em 1983, Susan Sontag aparece no início do filme Zelig escrito e dirigido por Woody Allen. Ela tece um depoimento, junto com outros intelectuais e escritores como Saul Bellow, sobre o personagem homônimo criado por W. Allen, Leonard Zelig, um homem com a estranha habilidade de metamorfosear-se em qualquer pessoa que chega-se próximo a ele, exceto as mulheres, e que estava em vários locais onde aconteceram diversos eventos importantes nos dois primeiros quartéis do século XX, nos EUA. Na segunda metade do século XX, poderíamos dizer que Susan Sontag fora uma espécie de Zelig do mundo intelectual norte-americano e a prova disso está nos seus Diários

Os Diários foram organizados pelo filho único de S. Sontag, o também escritor David Rieff, filho dela com Phillip Rief, professor de filosofia de Sontag que a conheceu quando esta fora sua aluna na Universidade de Chicago. Em seguida, casaram-se e tiveram D. Rieff. Susan tinha 18 anos quando se casou. 

Os Diários começam no ano de 1947, quando Sontag ingressa na Universidade da Califórnia, em Berkeley, para estudar Letras, com apenas 16 anos recém completos. A precocidade de Sontag é assustadora e sua ambição em prol da fruição da alta cultura é vertiginosa. Para termos uma ideia, aos 16 anos ela tem sua primeira experiência sexual com escritora e modelo Harriet Sohmers Zwerling e pouco depois, “entrevistou” (uma conversa informal) Thomas Mann, na ocasião, erradicado na Califórnia. O escritor alemão era uma das suas paixões literárias nos, digamos assim, “verdes anos”.


Com a sucessão temporal dos Diários, podemos perceber as mudanças não apenas nas preferências estéticas de Sontag, como também na sua forma de escrever que vai ganhando contornos mais “enxutos”. Porém, os Diários mostram uma intelectual que claudica em seu foro íntimo. A postura séria e contundente da ensaísta ferrenha na esfera pública – debatendo assuntos como a fotografia, as guerras que seu país entrou durante o século passado, a doença (câncer e AIDS) entre outros temas – contrastam com as hesitações da escritora frente às circunstâncias que atravessou durante os anos de formação, em especial, com o casamento:

“Sobre o casamento: É só isso. Não tem mais nada. As brigas + o carinho, infinitamente reduplicados. Só que as brigas têm uma densidade maior, diluindo a capacidade de carinho” (SONTAG, 2009, p. 79).

Sontag pôs em testamento que seu espólio (arquivos) fosse doado para a Universidade da Califórnia. Desta maneira, coube ao filho David Rieff organizar os mais de cem cadernos que compõem os Diários da escritora morta em 2004 em decorrência de um câncer. Sua morte virou ensaio fotográfico feito por sua companheira na época, a fotógrafa Annie Leibovitz, durante o período de tratamento e morte subsequente no hospital. 

David Rieff que também escreve o prefácio dos Diários, além de organizar a publicação deles. Afirma que tomou a iniciativa de lançar o material póstumo, mesmo tendo conteúdos divergentes com seus os interesses – a intimidade escancarada de sua mãe em sua relação com Phillip Rieff, pai de David – resolveu topar o desafio de lançá-lo alegando que se não o fizesse, outra pessoa o faria. 

Os Diários descortinam os anos de formação de Sontag em uma espécie de Bildungsroman confessional. Suas imersões na literatura e música clássica e contemporânea nos apresentam o gosto versátil da escritora que nos anos subsequentes irão transformá-la numa das intelectuais mais ativas do seu tempo. Em uma mistura até então incomum de: altura cultura dialogando com o universo da indústria cultural (publicidade, tevê, cinema comercial, fotografias, Pop Art e outros gêneros da cultura de massas). 

Ao mesmo tempo que lemos sobre as inúmeras referências que compõem o gosto de Sontag, podemos perceber os rasgos de autoestima após alguns períodos de baixo-estima sobretudo em relação à beleza física que, achava-a aquém das suas aspirações, como neste depoimento do dia 23/5/49, quando Susan tinha 17 para 18 anos:

“Agora conheço um pouco da minha capacidade... Sei o que quero fazer da minha vida, e tudo isso é tão simples, mas era tão difícil para mim saber no passado. Quero dormir com muitas pessoas — quero viver e ter ódio de morrer — não vou lecionar, nem fazer o mestrado depois da graduação... Não pretendo deixar que o meu intelecto me domine e a última coisa que quero é cultuar o conhecimento ou as pessoas que têm conhecimento! Não dou a mínima para o acúmulo de fatos de ninguém, exceto quando se tratar de uma reflexão sobre sensibilidade elementar, de que eu de fato preciso... Quero fazer tudo... ter um modo de avaliar a experiência — se me causa prazer ou dor, e tenho de ser muito cuidadosa quanto a rejeitar a dor — tenho de perceber a presença do prazer em toda parte e encontrá-lo também, pois ele está em toda parte! Quero me envolver completamente... tudo é importante! A única coisa a que renuncio é a capacidade de renunciar, de recuar: a aceitação da mesmice e do intelecto. Eu estou viva... eu sou linda... o que mais existe?” (Ibid. p, 31-32).

Podemos perceber a formação, nos Diários, desta inteligência sui generis quando nos deparamos com Sontag entrando em salas de cinema comerciais; vendo espetáculos de teatro de toda a sorte; ouvindo inúmeros concertos musicais entre outras iniciativas da indústria cultural das cidades em que viveu: Califórnia, Chicago, Nova Iorque, Londres, Paris isso para ficarmos apenas nos anos de formação que compreendem os Diários, pois sabemos que a “veia” cosmopolita da autora de Questão de ênfase aumenta com o passar dos anos.

Entretanto, em todas estas cidades Sontag acompanhou a vida acadêmica, ora como aluna de diversos cursos e seminários que vão da filosofia analítica de Ludwig Wittgenstein ao pensamento cristão de Søren Kierkegaard, passando, a partir da década de 1950, no casamento com P. Rieff, à escrita de um livro sobre Sigmund Freud, em seguida aos esboços do seu famoso ensaio, Contra a interpretação. Tudo isso somado ao estreito convívio com a intelligentsia do seu tempo nas diversas cidades onde viveu, seja por meio de relações epistolares ou de jantares, conferências ou conversas informais em cafés.

Com relação à literatura, Sontag fora uma leitora arguta. Pontua os Diários todo o seu esforço em empreender uma leitura sistemática da literatura do seu tempo e dos clássicos, com enfoque na literatura alemã. Não é à toa que ela sente-se lisonjeada quando o seu orientador em Oxford, o filósofo Stuart Hampshire, diz que os americanos – se referindo à Sontag – são demasiados sérios como os alemães. A sutil crítica do professor inglês soou como elogio para ela.
 

O convívio com a literatura por parte de Sontag chega ao paroxismo quando aos 15 anos ela já tinha lido o romance de Thomas Mann, A montanha mágica. Outro ponto de convivência íntima com a literatura, está presente na “encenação” que ela faz da narrativa homérica, Ilíada para o seu filho David quando este ia dormir. Entre os vários enxertos que povoam os Diários um diz muito sobre a disciplina “monástica” que Sontag tinha para si mesma como um ato de fé: “Não me importa se fica horrível. O único modo de aprender a escrever é escrever” (Ibid., p, 80). Além disso, ela guardava duas horas diárias dedicadas à escrita. 

Um fator candente da razão do divórcio dela com Philip Rieff era a sua total inadequação à vida matrimonial (dona de casa cindida entre o intelecto/marido e sexo/esposa), além das inúmeras discussões que haviam no casamento como podemos constatar no decorrer da leitura. Sobre a vida matrimonial, os Diários escasseiam-se a partir do início de 1950, período do início da vida a dois, aparecendo apenas alguns trechos sobre os conflitos com o marido: “No casamento, todo desejo se torna uma decisão” (Ibid., p, 66). Após o fim do casamento em 1957, a escrita de Sontag ganha contornos mais “leves”. Ela volta a escrever com mais regularidade e com um tom menos “carregado”. 

No período pós-casamento, ela começa a descrever pormenorizadamente os seus afazeres diários – comer, ler, escrever, lavar roupas, preparar viagens, mandar cartas, ir aos correios, tirar dinheiro do banco, tomar um táxi etc. – parece que a vida de dona de casa estava “inviabilizando” seus projetos profissionais. Neste ano, ela parte para estudar em Oxford e a vida na Europa descortina-se para ela com todo o esplendor da Era de Ouro do Capitalismo (1945-1973), como diria o historiador marxista inglês, Eric Hobsbawm.

Os Diários fazem pouca referência à infância da escritora e sua relação com à religião de sua família, o judaísmo. Sobre a opção religiosa de Sontag, as páginas dos Diários não dão muita pista. No primeiro momento ela escreve, “deus” (“com minúscula mesmo porque ele não existe” [p. 13], segundo ela). Em seguida, transita por sendas do Cristianismo em uma perspectiva de curiosidade intelectual. Outras vezes, faz interjeições com: “meu Deus!” (desta vez com maiúsculas). A tantas dos Diários, lemos ela apreciando carne suína – o que indica a sua não filiação ao judaísmo praticante: “Levei o material para a Mandrake para ser embrulhado, + vou ligar para saber na terça de manhã. Fiz uma refeição decente (costeletas de porco e camarões em molho de soja + cogumelos pretos) no Young Lee, por 2,79 dólares” (Ibid., p. 101).

Por fim, o biógrafo de Clarice Lispector, Benjamin Moser em matéria escrita à Folha de S. Paulo, em 3 de fevereiro de 2014, que está preparando a biografia de Susan Sontag, afirma que a escritora norte-americana morou em várias cidades do mundo e conheceu inúmeras outras. Seu arquivo na Universidade da Califórnia (Berkeley) reflete a natureza irrequieta de sua dona – um caleidoscópio de referências e suportes midiáticos que vão de canhotos de passagens, recortes de jornal a HDs com mais de 17 mil e-mails salvos. É por estas e outras que Susan Sontag foi uma Zelig do pensamento ocidental da segunda metade do século passado, e seus Diários dão uma prova viva deste intelecto plural.

REFERÊNCIAS 
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos, o breve Século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
HOMERO, Ilíada. São Paulo: Penguin Companhia, 2013.
MANN, Thomas. A montanha mágica. São Paulo: Nova Fronteira, 2006.
SONTAG, Susan. Diários (1947-1963). São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
ZELIG. Direção: Woody Allen. FOX - SONY DADC, 1983. DVD (60 min).

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Escritor e doutorando em Ciências Sociais (PGCS-UFRN)

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