A beleza ignorada

25.11.15 Unknown 0 Comentarios


Pouco prato não compensa lavar. A verdade é essa. Pouco prato é resíduo, coisa pouca. Ninguém liga para pouco prato. E a atividade é tão curta que a gente nem chega no nível da reflexividade - não dá para pensar na vida. Mas uma pilha de pratos, não. Uma pilha de pratos impõe respeito. As pessoas a olham de soslaio, amedrontadas. E quando você resolve topar a empreitada, se prestar a atenção direito, vai ver alguém comentando com o vizinho: "Olha lá, está nascendo um novo líder.". Além da gravidade e da sisudez subitamente adquiridas pelo respeito endereçado a você por quem lhe rodeia, lavar uma pilha de pratos é um exercício terapêutico. Serve para repassar os últimos acontecimentos, ponderar atitudes, relembrar as contas a pagar, maturar a ideia para uma crônica, digerir o argumento do texto não compreendido nas primeiras horas da manhã, etc. Tudo isso enquanto você desfaz o monte, organiza-o por seções: talheres, copos, pratos propriamente ditos, twpperwares e outros vasilhames, panelas por último, é claro, e, lentamente, vai lavando. Lavando, não. Construindo paulatinamente, e com muito esmero, sua obra prima - tal e qual os galos de João Cabral tecem a manhã. Porque a grande obra prima de quem asseia os pratos e areia as panelas é a pia e a cozinha limpíssimas. É a sua grande recompensa, o fruto do seu trabalho, a inigualável façanha. Para o(a) preguiçoso(a) ou para o(a) neófito(a) nas artes domésticas, a tarefa se encerra quando a última peça da louça é enxaguada. Negativo. Enquanto o escorredor deixa fluir a água oriunda do seu primeiro esforço, é hora de pôr no lixo o rejeito de comida acumulado no ralo, e de jogar fora o próprio lixo; depois, limpar e enxugar a pia; o mesmo com o fogão. O fogão limpo, com a tampa de vidro abaixada a cobrir as bocas, e, por cima dela, a indefectível toalhinha branca, é a cereja do bolo. É o ápice da organização da cozinha. É motivo de orgulho e digno de contemplação: você senta numa cadeira, apoia o cotovelo na mesa, o queixo na mão, e aprecia a sua realização. Mas, dentro em pouco, uma dessas pessoas empedernidas que se prendem no quarto e assistem qualquer coisa na Netflix, vem e arremessa sem cerimônia um prato, um copo, junto com a embalagem de um industrializado qualquer. O respeito conseguido há pouco se esvai na rotinização - e sua obra, já pouco sólida, se desmancha no ar. Faltou deferência, sensibilidade, empatia, consideração - faltou até ternura, diria eu. Oh, que vida injusta!

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