O entreatos de um ex-peão de fábrica

5.11.15 Cabotino 0 Comentarios


por RENATO K. SILVA*

No dia 27 de outubro de 2002, início da tarde, Eduardo Coutinho e equipe, conversam com o metalúrgico Geraldo, na residência deste. O torneiro mecânico, ou peão de fábrica como ele se autoproclama, tinha acabado de voltar das urnas. Geraldo havia votado em Lula para presidente e José Genuíno para governador de São Paulo, ambas votações no segundo turno.

A conversa fazia parte do documentário, Peões (Eduardo Coutinho, 2004) que, junto com Entreatos (João Moreira Salles, 2004) compôs uma mesma produção visando abarcar: a trajetória de Lula durante e após a sua experiência sindical no ABC paulista.

Enquanto a equipe de Entreatos persegue os últimos dias de Lula rumo à ascensão ao Palácio do Planalto, tal qual fizera Robert Drew com J. F. Kennedy no documentário, Primárias (1960) – um dos filmes marcos do chamado “cinema direto” norte-americano –, Peões dedicou-se a acompanhar a trajetória dos peões de fábrica que trabalharam com Lula durante o período das greves no ABC em que, o ex-presidente fora uma das lideranças mais carismáticas, na acepção de Max Weber.

Assistir aos dois filmes é uma experiência seminal para tentarmos entender a gênese do Lulismo enquanto projeto político em sua relação com às bases (os peões de fábrica, futuramente chamados pela sociologia brasileira de “precariado” ou “ralé”) e com os destinos que irão orientar Lula e, por conseguinte, o PT posteriormente (os conchavos políticos e com a classe empresarial com o objetivo de chegar ao poder). 

Em Entreatos podemos ver toda a cúpula do PT ao redor de Lula e acompanhando-o por toda a parte: o desconfiado José Dirceu, Luiz Gushiken, Antônio Palocci, Gilberto Carvalho, o ex-vice presidente José de Alencar e o serelepe Duda Mendonça (marqueteiro do PT nas eleições). Eram os homens mais próximos a Lula nas vésperas do pleito de 2002

Já em Peões a ênfase recai nos “anônimos” que compartilharam as agruras de um período histórico que tratava as questões sociais – no contexto: as disputas entre capital e trabalho – como caso de polícia, final da década de 1970 e início de 1980. Falava-se em anistia, a ditadura entrava na fase da abertura democrática: “lenta, gradual e segura”, mas a situação dos peões de fábrica continuava garroteada pelas arbitrariedades do capital em consonância com um Estado omisso para a causa sindical. Daí o recurso da greve como único expediente político possível naquele momento. E as conversas captadas por E. Coutinho recaem justamente neste período em que os peões e ex-peões carregam na memória experiências marcantes, relatadas com orgulho e certa saudade da época das lutas e da rotina no chão de fábrica, a produção.

Os dois documentários não têm um arremate triunfalista. Em Entreatos há na cena final uma saída de cena condizente com toda a narrativa anterior: Walter Carvalho (fotógrafo do filme) entra no elevador com Lula, Marisa (esposa), assessores e amigos depois que é anunciada a vitória nas eleições do candidato petista, rumo ao saguão do prédio onde mora a família Lula. No térreo, uma multidão de fotógrafos, jornalistas, cinegrafistas e curiosos esperam o mais novo Presidente da República. A câmera de Walter Carvalho vai se distanciando aos poucos e sai de cena, lentamente. O entreatos estava completo.

Em Pões a cena final com Geraldo além de não ter o teor triunfalista, como podemos sentir nas cenas finais de Entreatos em que Walter Carvalho acertadamente deixa para trás, tem uma atmosfera que toca o ceticismo. 



A conversa transcorre-se na cozinha da casa de Geraldo. Este inicia sua fala de maneira alegre. Ainda na efusão do domingo de eleição e da iminência de ver seu ex-companheiro de cetegoria torna-se Presidente da República. Geraldo é o último entrevistado do documentário. 

No decorrer do diálogo, as perguntas de E. Coutinho traz à tona o mal-estar que é viver uma profissão indeterminada. Geraldo já não tem mais emprego fixo. Vive ao sabor das circunstâncias de trabalhos esporádicos (“bicos”). Interpelado sobre o futuro dos filhos (um casal), Geraldo não deseja a eles a profissão que tem. Relembra os tempos da greve do ABC. Fala sobre sua experiência com Lula. Traça uma breve história sobre a gênese da palavra “peão”. Em seguida é indagado se sente saudades do tempo de fábrica: “Sim, com todo o sofrimento... A gente trabalhava sem segurança, sem nada... Eu tenho saudade ainda. Mas, eu gostaria que meu filho não fosse peão [...] Espero que eles não passem o que eu passei... É duro”. Em seguida, um gigantesco silêncio de mais de 20 segundos.

Vemos Geraldo abater-se numa prostração angustiante sobretudo para o espectador habituado a ter todos os silêncios preenchidos por sons tanto na ficção, na tevê e no documentário brasileiro. Mas, E. Coutinho e Geraldo seguram o silêncio e tenciona-o até o ponto em que o metalúrgico consegue emergir do fundo do poço de sua condição e pergunta, à queima-roupa, para E. Coutinho: “Você já foi peão de fábrica?”. Coutinho responde: “Não”. E continua o silêncio até o desligar da câmera e a subida dos créditos.

O silêncio de Geraldo antes e depois de sua pergunta para E. Coutinho, de alguma forma, desconfiava do tom triunfalista amplamente capitaneado pelo marketing político de Duda Mendonça sobretudo no otimista slogan: "A esperança venceu o medo". De fato, havia uma exultação no ambiente social brasileiro por conta da eleição de Lula após três derrotas nos últimos pleitos. Entretanto, havia alguma coisa de sobriedade e cautela naquele silêncio de Geraldo. Parecia que o silêncio do peão antevia o futuro do PT e do Lulismo não como uma profecia de Cassandra, mas como alguém que está diante da indeterminação do seu futuro e, por extensão, de sua família. Era um silêncio destituído de conchavos político e econômico. Um silêncio destituído de marketing eleitoral. Era um silêncio de ferro.

Naquele mesmo 27 de outubro de 2002, Lula sairia das urnas com um capital político de mais de 52 milhões de votos e ficaria no poder até 2010, e com direito a fazer uma sucessora. Mas, a pergunta de metalúrgico Geraldo continua ecoando no interior da sociedade brasileira, ora sendo respondida com um “não”, ora sendo respondida com silêncio.


REFERÊNCIAS

ENTREATOS. Direção: João Moreira Salles. VideoFilmes, 2004. DVD (117 min).






PEÕES. Direção: Eduardo Coutinho. VideoFilmes, 2004. DVD (85 min).








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Escritor e doutorando em Ciências Sociais pela UFRN.

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