A noite do tambor silenciado: a saída de Gilmar Bola Oito da Nação Zumbi
com o nó na garganta
e a imagem indo embora
da boca pra fora
já de segunda mão
Matéria do "Caderno C" do Jornal do Commercio, do dia 20/12/2015, noticia que Gilmar Bola Oito, antigo membro da Nação Zumbi, foi tirado da banda. A informação, é claro, repercutiu no cenário cultural pernambucano, e foi recebida com espanto por parte significativa do público. Bola Oito foi um dos fundadores do "Chico Science & Nação Zumbi" - no nem tão remoto fim do anos 1980. Isso parecia lhe conceder um lugar cativo no grupo.
Outro fator que contribuiu para o espanto foi o conteúdo da matéria: o músico estaria recebendo tratamento desigual (inclusive financeiro) perante os outros integrantes e seu afastamento teria sido decretado por meio de uma reunião da qual ele não participou - o próprio resultado da reunião não lhe teria sido comunicado por nenhum de seus ex-companheiros, mas pela empresária da banda, Ana Almeida.

Bem se sabe que as questões internas e o relacionamento interpessoal entre os membros tem uma força enorme na desunião de um grupo musical - o que pode culminar tanto com o fim dele ou com a saída de um dos integrantes. Mas o caminho que quero delinear aqui é um pouco distinto, e mais do que saber um motivo imediato que teria catalisado a sumária demissão de Bola Oito, o que interessa é entender o que teria possibilitado a sua saída.
Não é mistério para ninguém o processo de formação da banda "Chico Science & Nação Zumbi": Chico Science, vocalista do grupo "Loustal", conhece o conjunto percussivo "Lamento Negro", que lhe foi apresentado por Gilmar Bola Oito. Ao entrar em contato com o "Lamento Negro", parece ficar claro para Chico Science o seu projeto musical: a mistura entre elementos regionais e tradicionais e da cultura pop urbana lhe soava como a combinação perfeita. Advém daí o epíteto de "alquimista dos ritmos" que Chico carrega até hoje.
O ponto importante é que a denominação que o diferencia no cenário da música brasileira também serve para definir o papel que ele desempenhava dentro da banda: era Chico quem punha em "amálgama perfeito" as aspirações dos meninos mais afinados com o rock de garagem (Dengue, Lúcio Maia) e com o pessoal mais ligado à música regional (Bola Oito, Gira). Com a morte dele, e o advento da liderança interna de Jorge Du Peixe, o primeiro projeto é que parece ganhar mais espaço em detrimento do segundo.
É claro que a morte de Chico, o líder nato, afetaria os rumos sonoros da banda de maneira definitiva. O próprio Dengue reconhece isto. Mas sem o "alquimista" já não seria possível equalizar de maneira satisfatória os dois projetos sonoros que estão na gênese da banda. O centro gravitacional do grupo então passa a ser o quarteto Du Peixe, Pupilo, Lúcio e Dengue.
O projeto destes quatro parece querer conferir à banda uma identidade mais de rock, com forte influência do dub e largo uso de feitos sonoros de música eletrônica. A pecha de "banda de maracatu" que o conjunto conseguiu dos críticos menos sofisticados parecia incomodar os referidos membros, e era disto que eles queriam se distanciar - aliados à clara necessidade de sair da sombra de Chico Science e de se acomodar ao estilo mais cadenciado do vocal de Du Peixe. Aqui temos um dos muitos momentos em que o grupo manifesta este desejo.
Não que as alfaias - instrumento de Gilmar Bola Oito - estivessem fora da sonoridade da banda, mas elas tiveram seu papel subsumido ao projeto rock do grupo. Isto é, não tinham mais autonomia de reivindicar uma sonoridade regional - salvo em raríssimas exceções, como em "Quando a Maré Encher" e em "Meu Maracatu Pesa uma Tonelada". Mas, é claro, o programa de uma sonoridade mais "seca", onde os instrumentos e elementos regionais estavam, de certo modo, "esterilizados", foi sendo paulatinamente construído.

O "efeito Futura" fez com que a banda se concentrasse no "Fome de Tudo" (2007). O grupo sai do P&B ao multicor, visual e sonoramente. "Fome de Tudo" não é, nem de longe, pop e acessível, como definiu Jorge Du Peixe, na ânsia de dar um novo contorno à banda. Mas ele é, sem dúvida, um disco mais trabalhado, com muitas variações de ritmo e plasticamente melódico. Talvez o ponto alto da fase pós-Chico.
Depois disso o grupo entra num hiato de produções que só se encerraria ano passado, 2014, com o lançamento do segundo álbum homônimo. Talvez o título da primeira música, "Cicatriz", defina bem o que é esse trabalho: algo vitorioso, a cesura que costurou o despertar da banda depois de anos de ausência dos palcos, e algo ressacado, como se a força e o vigor ainda não estivesse plenamente restabelecidos. Este também parece ser um disco em que a banda quer se imiscuir no grosso das produções locais dos últimos anos, trazendo uma sonoridade muito semelhante à dos trabalhos solos de Otto ("Certas Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos", 2009) e Lirinha ("Lira", 2012), ambos produzidos por Pupilo. As alfaias, mais uma vez, retraídas em sua pujança.
Portanto, o protesto público de Gilmar Bola Oito, há quarto meses, pela perda de força nas decisões da banda, que dá notícias de um crescente escanteamento, e, agora, a denúncia de que teria sido expulso e o claro descontentamento pelo modo como isso se deu, pode ser entendido à luz do caminho que a Nação Zumbi trilhou depois da inesperada morte de Chico. O Bola Oito descolado ou anacrônico é fruto do enfraquecimento de um projeto musical, outrora vigoroso, que conferia espaço singular à sonoridade regional. Uma vez que um, o projeto, perde protagonismo sonoro, o outro, o músico, já não é mais necessário. Seria esta a lógica por trás da saída de Gilmar Bola Oito?
________________
Rosano Freire, doutorando em Ciências Sociais pela UFRN
________________
Rosano Freire, doutorando em Ciências Sociais pela UFRN
0 comentários: