Minha infância segundo um auto-outro-narrador
por Renato K. Silva
Antes
de iniciarmos a análise do romance Infância
cabe dizer que este trabalho de J. M. Coetzee é a primeira parte de uma
trilogia chamada, Cenas da vida na
província que conta com os títulos Infância,
Juventude e Verão. E que pretendemos desenvolver futuramente as análises
dos outros dois títulos que se comunicam não apenas no tocante à trajetória do
personagem, o próprio Coetzee “alterado” não apenas no sentido inerente ao
processo ficcional como também no que tange à “alteridade” da própria narração
(eu vs. outro ou eu/outro), como também na continuação e no desenvolvimento da
forma narrativa sui generis desta
trilogia: o auto-outro-narrador.
As
memórias da infância do escritor sul-africano ganhador do Prêmio Nobel de
Literatura de 2003, John Maxwell Coetzee, contidas no seu livro Infância (1997) – cenas da vida na província
I[1]
– são reminiscências comuns a um escritor – ou qualquer pessoa – que faça o
exercício de resgate do conjunto de imagens e lembranças de quando era criança.
Entretanto, o que há de estranho nos relatos de J. M. Coetzee é a sua escrita
em terceira pessoa, numa espécie de auto-outro-biografia, ou narrador-outro.
No trecho destacado a seguir, podemos perceber claramente o recurso formal do
qual falamos:
“ELE NÃO
CONTA NADA para a mãe. Sua vida escolar é guardada em segredo absoluto. Ela não
vai saber de nada, decide, a não ser o que estiver no boletim trimestral, que
será impecável. Ele será sempre o primeiro da classe. Seu comportamento será
sempre muito bom, e o aproveitamento, excelente. Enquanto o boletim dele for
irretocável, ela não terá o direito de perguntar nada. É o contrato que ele
estipula mentalmente”. (Ibid. p. 9)
Logo
de início, o leitor é envolvido numa atmosfera de estranhamento porque mesmo
não conhecendo minimamente a biografia do escritor sul-africano, percebe-se que
ele está referindo-se a sua própria história, só que na terceira pessoa. É como
se o narrador onisciente – típico das narrativas em terceira pessoa –
claudicasse frente à primeira pessoa que insiste em irromper o tempo inteiro na
história.
J.
M. Coetzee nasceu na Cidade do Cabo, África do Sul, em 1940, é filho de
descendentes de holandeses, em casa falava inglês; com os demais parentes,
falava africânder – uma língua remanescente do período em que a Holanda
colonizou uma parte da África. Adentrando a narrativa de Infância, percebemos que além da tensão com o idioma na escola, em
casa e com os demais parentes, Coetzee fora fustigado pelo conflito religioso e
étnico por conta do Apartheid no
país.
Em
Infância, constatamos como Coetzee
viveu em um torvelinho de mal-entendidos que, muitas vezes, fora praticado por
ele mesmo. Como no caso em que disse na escola que era católico, sem saber nada
a respeito do que consistia sua afirmação. A partir daí, ele será perseguido
por todos, inclusive pelos garotos católicos que nunca o viam na missa, além
dos protestantes e pelos judeus, minoria na escola e em Worcester – pequena cidade
em que a família Coetzee se mudara após o fim da Segunda Guerra, cujo pai do
escritor Zacharias Coetzee, fora um ex-combatente.
A
família Coetzee consistia no já mencionado pai – veterano de guerra, advogado e
funcionário do governo sul-africano, só que na época da narrativa, ele
trabalhava para a Conservas Standard, propriedade de um judeu, o único que a
família tinha deferência por conta da condição de empregador do pai. A mãe do
escritor, Vera Wehmeyer, professora numa escola secundária, mulher de hábitos
pouco-ortodoxos para a sociedade sul-africana da época, como no trecho em que
ela compra uma bicicleta e, por isso, é rechaçada publicamente e privadamente
por acreditarem que ela fracassaria na prática pelo simples fato de ser mulher.
Além dos pais, Coetzee tinha um irmão caçula.
Por
meio de Infância podemos vislumbrar
um pouco da natureza reservada e do modo de vida “monástico” que J. M. Coetzee
cultiva na vida até hoje. Homem de poucas falas, entrevistas e aparições
públicas – não foi receber, por duas vezes, o Prêmio Man Booker Prize for Fiction, um dos mais prestigiados da língua
inglesa. Dizem que nunca bebeu, nunca fumou, não come carne vermelha e faz
longas pedaladas de bicicleta por dia em sua atual cidade, Adelaide, localizada
na Austrália, onde trabalha como pesquisador honorário desde 2003, no
Departamento de Língua Inglesa da Universidade de Adelaide.
Em
Infância, o embrião do estilo de vida
austero de Coetzee está lá na escola primária – como exposto no parágrafo
anterior – na busca incessante em ser o melhor aluno em todas as matérias, pois
o medo de encarar a palmatória lhe vexava e o incitava a ser sempre o laureado.
O rigor com os sentimentos também está presente na relação pouco afetiva e
efetiva que tinha com mãe, às vezes demonstrando irritabilidade no afeto que a
mãe tentava lhe deitar, causando mútuo desconforto. A circunspecção e o esmero
do púbere Coetzee está presente também na rigidez de sua aparência, sempre fez
questão dos calçados numa época que os africânderes iam à escola descalços,
assim como os alunos de cor (negros).
A
relação com o pai também é intempestiva, sobretudo quando o pai larga o emprego
na Conservas Standard, e volta a advogar na Cidade do Cabo, toda a família o
acompanha. Na nova (velha) cidade, o pai volta a ter os contatos de outrora e
uma maior rentabilidade financeira com o novo emprego. Em seguida, o pai começa
embriagar-se de forma contumaz e torna-se alcoólatra. Perde o escritório por
não poder mais mantê-lo devido às dívidas com o sindicato por conta de
empréstimos indevidos – com recursos do sindicato – para amigos. Chamo atenção
para este imbróglio da família Coetzee porque um dos líderes do sindicato, sr.
Golding (negro) vai à casa dos Coetzee cobrar as dívidas do pai do escritor. Após
a cobrança, há um costume que diz muito sobre a relação entre os brancos e os
negros na África do Sul do Apartheid:
“O sr.
Golding chega. Usa terno jaquetão, não sorri. Toma o chá que sua mãe serve, mas
não promete nada. Quer o dinheiro dele. Depois que ele sai, há uma discussão
sobre o que fazer com a xícara de chá. O costume, ao que parece, é que quando
uma pessoa de cor bebe numa xícara, ela tem de ser quebrada. Ele fica surpreso
que a família da mãe, que não acredita em nada, acredite nisso. No entanto,
afinal, a mãe apenas lava a xícara com alvejante” (Ibid. p. 137)
Após
a poluição moral do pai frente à comunidade (desemprego, alcoolismo e dividas),
o jovem Coetzee sente repulsa do pai que, desempregado, definhava em casa como
um alcóolatra pusilânime. A mãe voltou a trabalhar fora, a família teve apuro
financeiro, a escola na cidade grande não lhe dava mais prazer porque, talvez,
perdera o posto do melhor aluno da sala agora que encontrava-se em uma escola
maior.
Em
todo Infância o único lugar que o
jovem Coetzee não se sente completamente alheio, é na fazenda da família pelo
tronco paterno. A fazenda pertenceu ao avô de Coetzee que, ao morrer, deixara
para os filhos. Na propriedade, percebemos uma afinidade do narrador-outro
com um rincão que, de maneira misteriosa, manifestava-se como seu, porém
impossível de tomar posse habitando-o:
“Ele tem de
ir para a fazenda porque não existe lugar no mundo de que goste mais ou imagine
gostar mais. Tudo o que é complicado no amor pela mãe é descomplicado no amor
pela fazenda. Mas desde que pode se lembrar, esse amor teve um lado doloroso.
Ele pode visitar a fazenda, mas nunca irá morar lá. A fazenda não é sua casa;
ele nunca passará de um hóspede, um hóspede difícil. Até hoje, a cada dia a
fazenda e ele percorrem caminhos diferentes, se separando, se distanciando cada
vez mais. Um dia a fazenda estará perdida para sempre, totalmente; e ele já
sofre por essa perda”. (Ibid. p. 73)
A
fazenda manifestava uma atenção maior do jovem Coetzee porque, talvez, o desobrigasse
do rigor auto imposto em casa e na escola, pois fazia as visitas no período de
férias escolar. Na propriedade, ele podia ouvir as histórias dos seus
antepassados, conviver com os funcionários da fazenda – homens, mulheres e
crianças de cor –, ordenhar ovelhas, ou comer amiúde suas carnes nas refeições.
Enfim, ele experimentava um leque de experiências que a vida urbana lhe
sonegava.
Afora
o rigor que o jovem Coetzee tentou impor a sua vida desde a terna idade, o eu-outro
da narrativa, no geral, teve uma infância típica de um garoto que cresceu na
Era do Rádio e no início da Era da Globalização no período do pós Segunda
Guerra. A paixão que ele detinha pelo críquete, as partidas ouvidas no “pé do
rádio” junto com o pai. Os almanaques e livros de coleções infantis que
começavam a ser distribuídos em escala planetária fizeram do narrador-outro
resgatar experiências pregressas de caráter pueril, e por que não,
felizes.
Por
fim, não é o conteúdo da narrativa que nos revela o escritor em seu texto
(experiência narrativa) e seu contexto (o meio que lhe circunscreve), mas sim a
forma como a história é narrada. Ou seja, o narrador-outro é além de um
recurso formal, o ponto nevrálgico que nos descortina a própria dimensão da personagem-autor do livro: a reserva, o distanciamento, a austeridade, a
circunspecção estão presentes na forma como a “primeira pessoa” torna-se
“terceira pessoa”. O distanciamento na “terceira pessoa” nos desperta para
prestarmos atenção em uma natureza alheia, tanto na escrita quanto na vida da
personagem. Em uma palavra: o eu de Infância
é outro.
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Escritor
e Doutorando em Ciências Sociais pela UFRN.
[1] COETZEE, J. M. Infância –
cenas da vida na província I. São Paulo: Companhia das letras, 1997.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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