Minha infância segundo um auto-outro-narrador

12.12.15 Cabotino 0 Comentarios


por Renato K. Silva             

Antes de iniciarmos a análise do romance Infância cabe dizer que este trabalho de J. M. Coetzee é a primeira parte de uma trilogia chamada, Cenas da vida na província que conta com os títulos Infância, Juventude e Verão. E que pretendemos desenvolver futuramente as análises dos outros dois títulos que se comunicam não apenas no tocante à trajetória do personagem, o próprio Coetzee “alterado” não apenas no sentido inerente ao processo ficcional como também no que tange à “alteridade” da própria narração (eu vs. outro ou eu/outro), como também na continuação e no desenvolvimento da forma narrativa sui generis desta trilogia: o auto-outro-narrador.  

As memórias da infância do escritor sul-africano ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2003, John Maxwell Coetzee, contidas no seu livro Infância (1997) cenas da vida na província I[1] – são reminiscências comuns a um escritor – ou qualquer pessoa – que faça o exercício de resgate do conjunto de imagens e lembranças de quando era criança. Entretanto, o que há de estranho nos relatos de J. M. Coetzee é a sua escrita em terceira pessoa, numa espécie de auto-outro-biografia, ou narrador-outro. No trecho destacado a seguir, podemos perceber claramente o recurso formal do qual falamos:

“ELE NÃO CONTA NADA para a mãe. Sua vida escolar é guardada em segredo absoluto. Ela não vai saber de nada, decide, a não ser o que estiver no boletim trimestral, que será impecável. Ele será sempre o primeiro da classe. Seu comportamento será sempre muito bom, e o aproveitamento, excelente. Enquanto o boletim dele for irretocável, ela não terá o direito de perguntar nada. É o contrato que ele estipula mentalmente”. (Ibid. p. 9)

Logo de início, o leitor é envolvido numa atmosfera de estranhamento porque mesmo não conhecendo minimamente a biografia do escritor sul-africano, percebe-se que ele está referindo-se a sua própria história, só que na terceira pessoa. É como se o narrador onisciente – típico das narrativas em terceira pessoa – claudicasse frente à primeira pessoa que insiste em irromper o tempo inteiro na história.
  
J. M. Coetzee nasceu na Cidade do Cabo, África do Sul, em 1940, é filho de descendentes de holandeses, em casa falava inglês; com os demais parentes, falava africânder – uma língua remanescente do período em que a Holanda colonizou uma parte da África. Adentrando a narrativa de Infância, percebemos que além da tensão com o idioma na escola, em casa e com os demais parentes, Coetzee fora fustigado pelo conflito religioso e étnico por conta do Apartheid no país. 

Em Infância, constatamos como Coetzee viveu em um torvelinho de mal-entendidos que, muitas vezes, fora praticado por ele mesmo. Como no caso em que disse na escola que era católico, sem saber nada a respeito do que consistia sua afirmação. A partir daí, ele será perseguido por todos, inclusive pelos garotos católicos que nunca o viam na missa, além dos protestantes e pelos judeus, minoria na escola e em Worcester – pequena cidade em que a família Coetzee se mudara após o fim da Segunda Guerra, cujo pai do escritor Zacharias Coetzee, fora um ex-combatente. 

A família Coetzee consistia no já mencionado pai – veterano de guerra, advogado e funcionário do governo sul-africano, só que na época da narrativa, ele trabalhava para a Conservas Standard, propriedade de um judeu, o único que a família tinha deferência por conta da condição de empregador do pai. A mãe do escritor, Vera Wehmeyer, professora numa escola secundária, mulher de hábitos pouco-ortodoxos para a sociedade sul-africana da época, como no trecho em que ela compra uma bicicleta e, por isso, é rechaçada publicamente e privadamente por acreditarem que ela fracassaria na prática pelo simples fato de ser mulher. Além dos pais, Coetzee tinha um irmão caçula.

Por meio de Infância podemos vislumbrar um pouco da natureza reservada e do modo de vida “monástico” que J. M. Coetzee cultiva na vida até hoje. Homem de poucas falas, entrevistas e aparições públicas – não foi receber, por duas vezes, o Prêmio Man Booker Prize for Fiction, um dos mais prestigiados da língua inglesa. Dizem que nunca bebeu, nunca fumou, não come carne vermelha e faz longas pedaladas de bicicleta por dia em sua atual cidade, Adelaide, localizada na Austrália, onde trabalha como pesquisador honorário desde 2003, no Departamento de Língua Inglesa da Universidade de Adelaide.

Em Infância, o embrião do estilo de vida austero de Coetzee está lá na escola primária – como exposto no parágrafo anterior – na busca incessante em ser o melhor aluno em todas as matérias, pois o medo de encarar a palmatória lhe vexava e o incitava a ser sempre o laureado. O rigor com os sentimentos também está presente na relação pouco afetiva e efetiva que tinha com mãe, às vezes demonstrando irritabilidade no afeto que a mãe tentava lhe deitar, causando mútuo desconforto. A circunspecção e o esmero do púbere Coetzee está presente também na rigidez de sua aparência, sempre fez questão dos calçados numa época que os africânderes iam à escola descalços, assim como os alunos de cor (negros).

A relação com o pai também é intempestiva, sobretudo quando o pai larga o emprego na Conservas Standard, e volta a advogar na Cidade do Cabo, toda a família o acompanha. Na nova (velha) cidade, o pai volta a ter os contatos de outrora e uma maior rentabilidade financeira com o novo emprego. Em seguida, o pai começa embriagar-se de forma contumaz e torna-se alcoólatra. Perde o escritório por não poder mais mantê-lo devido às dívidas com o sindicato por conta de empréstimos indevidos – com recursos do sindicato – para amigos. Chamo atenção para este imbróglio da família Coetzee porque um dos líderes do sindicato, sr. Golding (negro) vai à casa dos Coetzee cobrar as dívidas do pai do escritor. Após a cobrança, há um costume que diz muito sobre a relação entre os brancos e os negros na África do Sul do Apartheid:

“O sr. Golding chega. Usa terno jaquetão, não sorri. Toma o chá que sua mãe serve, mas não promete nada. Quer o dinheiro dele. Depois que ele sai, há uma discussão sobre o que fazer com a xícara de chá. O costume, ao que parece, é que quando uma pessoa de cor bebe numa xícara, ela tem de ser quebrada. Ele fica surpreso que a família da mãe, que não acredita em nada, acredite nisso. No entanto, afinal, a mãe apenas lava a xícara com alvejante” (Ibid. p. 137)

Após a poluição moral do pai frente à comunidade (desemprego, alcoolismo e dividas), o jovem Coetzee sente repulsa do pai que, desempregado, definhava em casa como um alcóolatra pusilânime. A mãe voltou a trabalhar fora, a família teve apuro financeiro, a escola na cidade grande não lhe dava mais prazer porque, talvez, perdera o posto do melhor aluno da sala agora que encontrava-se em uma escola maior.

Em todo Infância o único lugar que o jovem Coetzee não se sente completamente alheio, é na fazenda da família pelo tronco paterno. A fazenda pertenceu ao avô de Coetzee que, ao morrer, deixara para os filhos. Na propriedade, percebemos uma afinidade do narrador-outro com um rincão que, de maneira misteriosa, manifestava-se como seu, porém impossível de tomar posse habitando-o:

“Ele tem de ir para a fazenda porque não existe lugar no mundo de que goste mais ou imagine gostar mais. Tudo o que é complicado no amor pela mãe é descomplicado no amor pela fazenda. Mas desde que pode se lembrar, esse amor teve um lado doloroso. Ele pode visitar a fazenda, mas nunca irá morar lá. A fazenda não é sua casa; ele nunca passará de um hóspede, um hóspede difícil. Até hoje, a cada dia a fazenda e ele percorrem caminhos diferentes, se separando, se distanciando cada vez mais. Um dia a fazenda estará perdida para sempre, totalmente; e ele já sofre por essa perda”. (Ibid. p. 73)

A fazenda manifestava uma atenção maior do jovem Coetzee porque, talvez, o desobrigasse do rigor auto imposto em casa e na escola, pois fazia as visitas no período de férias escolar. Na propriedade, ele podia ouvir as histórias dos seus antepassados, conviver com os funcionários da fazenda – homens, mulheres e crianças de cor –, ordenhar ovelhas, ou comer amiúde suas carnes nas refeições. Enfim, ele experimentava um leque de experiências que a vida urbana lhe sonegava.

Afora o rigor que o jovem Coetzee tentou impor a sua vida desde a terna idade, o eu-outro da narrativa, no geral, teve uma infância típica de um garoto que cresceu na Era do Rádio e no início da Era da Globalização no período do pós Segunda Guerra. A paixão que ele detinha pelo críquete, as partidas ouvidas no “pé do rádio” junto com o pai. Os almanaques e livros de coleções infantis que começavam a ser distribuídos em escala planetária fizeram do narrador-outro resgatar experiências pregressas de caráter pueril, e por que não, felizes.  

Por fim, não é o conteúdo da narrativa que nos revela o escritor em seu texto (experiência narrativa) e seu contexto (o meio que lhe circunscreve), mas sim a forma como a história é narrada. Ou seja, o narrador-outro é além de um recurso formal, o ponto nevrálgico que nos descortina a própria dimensão da personagem-autor do livro: a reserva, o distanciamento, a austeridade, a circunspecção estão presentes na forma como a “primeira pessoa” torna-se “terceira pessoa”. O distanciamento na “terceira pessoa” nos desperta para prestarmos atenção em uma natureza alheia, tanto na escrita quanto na vida da personagem. Em uma palavra: o eu de Infância é outro.

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Escritor e Doutorando em Ciências Sociais pela UFRN.


[1] COETZEE, J. M. Infância – cenas da vida na província I. São Paulo: Companhia das letras, 1997. Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

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