Complexo de Meursault

1.9.15 Cabotino 0 Comentarios


Em 1942 Albert Camus lançava O Estrangeiro, um daqueles romances que não deixam o leitor passar ileso. Um livro sem concessão. A narrativa conta a história de Meursault, um homem branco que mora no bairro francês em Argel, capital da Argélia. A tantas da narrativa, Meursault atira e mata um árabe no litoral de Argel por motivos digamos assim, fenomenológicos – fazia muito calor no dia. No final, há o julgamento de Meursault e a certa altura da sessão, entra em cena o porteiro do asilo onde a mãe do protagonista vivia antes de morrer. O porteiro disse ao júri que o réu era indiferente à mãe e relembra que ele não chorou quando fora ao asilo reclamar o corpo. O júri fica horrorizado com tamanha indiferença e ausência de sentimento do réu frente à notícia da morte da mãe na ocasião relatada pelo porteiro.

Trouxe à tona o episódio do julgamento em O Estrangeiro para falar da punição que a Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) decretou sobre os cineastas Cláudio Assis e Lírio Ferreira, após o imbróglio que envolveu a dupla de diretores no último sábado (28/08), no cinema do Museu, em Casa Forte, na ocasião do debate sobre o filme Que horas ela volta? (2015) que contou com a presença da diretora do longa-metragem, Anna Muylaert, amiga dos dois cineastas. A punição consiste em: suspensão de um ano para qualquer atividade que envolva os nomes de L. Ferreira e C. Assis dentro das dependências do cinema da Fundaj (Derby e Casa Forte). Isto é, proibição das exibições dos filmes da dupla de realizadores.

A celeuma ocorreu porque a dupla de cineastas “visivelmente embriagados”, segundo relatos da plateia, chegou à sessão e começou a monopolizar o debate com expressões de gordofobia em direção à protagonista do filme, a atriz Regina Casé, e comentários de cunho misógino e homofóbico com membros da equipe de Que horas ela volta? Tudo isso gerou inúmeros comentários nas redes sociais, sobretudo no Facebook. Alguns dizendo que foi justa a punição; outros, que foi exagerada. Enfim, aquela polarização política que mistura: patrulhamento ideológico, politicamente correto, dedos em riste no teclado e discursos batidos envolvendo a famigerada expressão, tolerância. Tão liberal quanto anódina.


O que aparentemente escapou do debate é a posição de censura da Fundaj. Sim, censura porque quando o Estado resolve ser crítico de arte surgem distorções como a desta decisão. De maneira apressada e sem um mínimo de ponderação, a Fundaj resolveu indexar às obras dos cineastas aos comentários repugnantes de dois homens bêbados (o que não justifica o comportamento reles de ambos, é claro). Ou seja, o que os filmes de L. Ferreira e C. Assis têm a ver com os lamentáveis comentários preconceituosos dos seus criadores? E digo mais, com esta decisão a Fundaj está privando quem de fato pagou e paga não só as produções da dupla de diretores indexados, como também as instalações da própria Fundação Joaquim Nabuco, o cidadão brasileiro.

Não devemos nos esquecer que ela é uma instituição de pesquisa social financiada pelo poder executivo. Já os filmes são produzidos com recursos do governo federal, por meio da dedução fiscal da Lei Rouanet, em menor aporte, e com maior aporte do Funcultura – o Fundo de Fomento à Cultura de Pernambuco – por intermédio do ICMS estadual. Ora, o grande prejudicado desta decisão de horizonte político-social limitado, é quem realmente paga a conta de tudo, o público. 

Não sei se Sangue Azul (Lírio Ferreira, 2015) ainda está em cartaz na Fundaj, e se estiver qual deve ser o posicionamento da instituição frente ao longa-metragem: retirá-lo de cartaz? Ou deixá-lo porque a punição não é retroativa?

Qualquer obra de audiovisual produzida no país com dinheiro público não é apenas de quem produz – diretores, equipe técnica etc., - é um patrimônio do povo brasileiro que, de fato, pagou a fatura do produto. Outro agravante, a punição não recai apenas nos cineastas e no público de modo geral, ela recai também sobre a equipe técnica que, acredito, não teve nada a ver com o lastimável episódio protagonizado por L. Ferreira e C. Assis. Se é para fazer alguma sanção, que esta seja praticada em quem realmente produziu o mal-estar, ou seja, os diretores.

Episódios deste tipo me fazem lembrar a história do escritor francês, Louis Ferdinand Celine que foi um colaboracionista na época da invasão alemã à França, durante a Segunda Guerra Mundial. Sei que o exemplo é extremo, mas há uma analogia. Na época que descobriram o colaboracionismo de Celine, muitos quiseram indexar sua obra literária fazendo um estranho – e não muito incomum – exercício de universalizar uma postura que fora individual. Isto é, impuseram um julgamento à obra artística acabada (tanto na esfera estética quanto ética) de Celine, no mesmo patamar de sua colaboração com os nazistas. Tentando inferiorizar sua obra por conta do seu posicionamento ideológico-político.

Ao que me parece, o exercício de jogar a água da banheira fora com o bebê junto, foi praticado no episódio da punição aos dois cineastas. Mais uma vez, as obras artísticas que foram realizadas em condições certamente opostas das que foram vilmente protagonizadas por seus realizadores estão sendo, metonimicamente, responsáveis.

Não seria um desserviço público: uma instituição de pesquisa social com décadas de atuação em esfera nacional e internacional, com um recém programa de pós-graduação em Sociologia para o ensino médio, privar o público de assistir aos filmes financiados por este mesmo público? Um absurdo tipicamente brasileiro: dinheiro público barrando dinheiro público. 

Com esta decisão unilateral e pouco ponderada, parece que há mais coisas em jogo. Talvez a decisão não fora apenas tomada pela repercussão que o entrevero teve nas redes sociais a priori, somado o “agravante” de ter sido praticado na recém inaugurada sala de exibição no coração da Fundaj – o Museu do Homem do Nordeste – a instituição quis tomar uma decisão enérgica. Ao que parece, a sentença mira o incipiente campo do audiovisual pernambucano. Em uma palavra, o gancho de um ano para a dupla de diretores parece indicar qual o lado em que a balança do audiovisual está pesando mais em Pernambuco no momento, e o lado é o da Fundaj que tem sua programação sob a curadoria de dois cineastas, Kleber Mendonça Filho e Luis Joaquim.

Finalmente, o Complexo de Meursault se abateu na Fundaj que, com esta decisão, fez as vezes do porteiro do asilo em que vivia a mãe do personagem-narrador de O Estrangeiro: esquivou-se do cerne da questão – as posturas repugnantes da dupla de realizadores – e culpou a reboque quem de fato não teve nada com a história, os filmes que serão privados de serem exibidos em uma das duas melhores salas da cidade, justamente em um período em que a cultura agoniza em todo o país. Parece que o absurdo é realmente a tônica humana como aponta Camus, sobretudo abaixo do Equador.

_____________
Na imagem, o ator Luiz Carlos Vasconcelos interpretando Lampião no filme Baile perfumado (Lírio Ferreira e Paulo Caldas, 1997).

0 comentários: