A lógica da brodagem

2.9.15 Unknown 0 Comentarios


Recentemente o tumulto causado por Cláudio Assis e Lírio Ferreira no debate sobre o filme "Que Horas Ela Volta?", de Anna Muylaert, que contava com a presença da diretora e que foi realizado no Cinema do Museu, Casa Forte, tomou conta da cena cultural pernambucana. A postura lamentável dos dois cineastas foi, inicialmente, denunciada nas redes sociais, e só depois alcançou a mídia tradicional.

A repercussão do caso obrigou a Fundaj (Fundação Joaquim Nabuco), instituição que administra o cinema, a se posicionar. O que ela fez, primeiramente, através de uma nota onde condenou a atitude dos cineastas e pediu desculpas ao público. Posteriormente, outra nota foi divulgada, dessa vez comunicando uma "punição" ao dois envolvidos - que consiste numa suspensão, por um ano, de qualquer atividade relacionada a Cláudio Assis e Lírio Ferreira nas dependências da Fundaj, o que inclui também, e sobretudo, a exibição dos filmes deles.

A indexação da obras dos cineastas repercutiu bastante e foi alvo de reflexões também por parte do FoiHoje. Em "Complexo de Mersault", o Cabotino levantou questões relativas ao papel do Estado, que teria a função de garantir o acesso a obras, como os filmes dos dois cineastas, produzidas com dinheiro público; a Fundaj, instituição de pesquisa fortemente sustentada com aporte público, seria o caminho pelo qual essa produção é escoada.

A questão é que os dois diretores, ao quererem protagonizar um espaço no qual não cabiam seus protagonismos, ao desrespeitarem diretora, elenco e público - tudo isso conforme relatos publicados nas redes sociais -, assumiram uma conduta machista e homofóbica, e acenderam uma discussão sobre gênero e sexualidade. Estes talvez sejam os temas mais candentes do debate político e social, hoje, no mundo. Tema esse que já alcançou a esfera da produção cultural, área mesma de Cláudio e Lírio, como atestam os beijos gays das últimas novelas da Globo, o filme francês "Azul é a Cor Mais Quente" e o pernambucano "Tatuagem", para ficar nos exemplos mais recentes e variados possíveis.

É aqui que todo o "argumento prático" em torno do papel do Estado e da Fundaj parece degringolar; é aqui que a punição ao triângulo diretor-equipe-público, e não estritamente a diretor-pessoa, ganha plausibilidade e começa ser aplaudida. Porque toda a nossa organização socioeconômica e todas as formas de produção, inclusive as de produção de cultura, se coordenam com práticas e hábitos mentais. Isto é, há normas e valores em jogo. Há um código simbólico - e Cláudio e Lírio parecem ter rompido, agora, de forma irremediável esse código.

Digo "agora" porque, e acredito que não seja difícil recordar, Lírio e Cláudio já foram os ícones maiores do ufanismo pernambucano. Suas obras davam o tom desse esquisito nacionalismo provinciano; forneciam a sustança da vaidade local. E seus diretores pareciam corporificar essa aura. O segundo deles, de sobrenome "Assis", era amiúde, e até mesmo em espaços institucionais e acadêmicos, classificado como um diretor "anárquico", "liberto", "sem pudores".

Será demais lembrar a estreia de "Febre de Rato", no Janela de Cinema de 2011, onde Cláudio Assis subiu num Variant azul, carro utilizado nas filmagens do longa, e foi ovacionado pelo público presente, que, àquele momento, ainda aguardava do lado de fora a abertura das portas do Cinema São Luís para a sessão?

Recordo para isso pontuar que a mesma "cena cultural" que agora repreende, desaprova e censura os dois diretores, outrora os aclamou e quase os"santificou". Em outro termos, essa "cena", esse esquema de produção baseado na "brodagem", que configura um certo tipo de "sociedade do elogio mútuo", onde o que é caseiro é necessariamente legal, tem parte de culpa na egolatria dos dois cineastas, egolatria essa que transbordou em machismo na sessão de debate de "Que Horas Ela Volta?". A cena, tal e qual chronos, quer tragar quem ela própria concebeu.

Ajuda também a colocar mais algumas nuances na decisão, que parece ter passado quase ilesa a críticas, da Fundaj de proibir obras de Cláudio e Lírio. Isso porque em toda formação cultural há certos grupos em disputa. No caso da produção do audiovisual de Pernambuco, a turma do "sertão pop" - Cláudio Assis, Lírio Ferreira, Paulo Caldas, Marcelo Gomes -, parece estar perdendo espaço para a galera que critica, através de seus filmes, a categoria a qual pertencem: a classe média urbana de Recife e ajdacências  - desse grupo, fazem parte Daniel Aragão, Gabriel Mascaro, Marcelo Pedroso, Kleber Mendonça Filho. Este último, a figura responsável pelo setor de cinema da Fundação Joaquim Nabuco. Pois é...

Refletir e criticar a punição da Fundaj a Cláudio Assis e Lírio Ferreira não é, nem de longe, anuir ou defender a conduta deles dois. Enquanto escrevia estas linhas, tomo conhecimento que a figura central em toda esta celeuma, a diretora Anna Muylaert, se pronunciou a favor de uma punição, mas contra a proibição dos filmes. Isso é significativo, mas a sanção imposta fela Fundaj não parece que vai ser retificada - tendo em vista, também, que ela foi bem recebida pelo público. Dentro desse quadro, portanto, vale a indagação: passaremos em revista a conduta particular e as atitudes pessoais de diretores e diretoras antes  de colocarmos suas obras em cartaz?







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