Para além da casca do pão
Dois pirralhos sem camisa, descalços, sobre um
solo de massapê levemente umedecido pelo chuviscado recente da chuva fina. Cada
um munido com garrafas preenchidas com bolinhas de gude. Após quebrarem um
palito de picolé ao meio, o primeiro traça uma risca vertical no massapê; o
segundo, traça um triângulo à nove passos da lista vertical recém feita pelo
primeiro. Em seguida, ambos casam, três bolinhas de gude no interior do
triângulo. Depois do par ou ímpar, os antagonistas, tal qual um western de Sérgio Leone, perfilam-se
atrás da linha vertical e arremessam suas bolas de jogada. O primeiro escolheu
uma pequena ferrança; o segundo, uma bola de leite – não vale cocão porque leva
vantagem no arremesso por conta da densidade de bolas dentro do triângulo. Quem
ganha no par ou ímpar arremessa primeiro em direção ao triângulo. Se sua bola
não ficar presa dentro da figura geométrica junto com as demais seis bolas
casadas de parte a parte, ele iniciará os lances após o arremesso do segundo.
Se errar o teco, onomatopeia que reflete o êxito da jogada no momento que a
bola do jogador em questão toca uma outra no interior do triângulo e ambas saem
ilesa do campo geométrico, caso contrário, passa-se a vez ao adversário. É o
duelo da ferrança com a bola de leite, a intrepidez do metal polido, esférico e
pesado, de um lado; versus a leveza do vidro adensado, do outro. O nível de
tensão aumenta à medida que as bolas vão escasseando no interior do triângulo.
O paroxismo surge quando resta apenas uma única bola dentro da figura
geométrica. Naquele instante, o mundo todo era aquela solitária bola de gude azul
e diáfana dentro do triângulo, e a espera do teco que irá removê-la de sua
posição até então inerte. Enquanto o duelo caminhava para o fim, deixei os
antagonistas entregues à disputa pela última bolinha dentro do triângulo e
assim como cheguei, parti.
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