Matando o tempo II
O som da piaçava repuxando para lá e para cá no chão, sobretudo nos fins de tarde,
é a prova de que a vida varrida insiste em voltar. Há um movimento sisífico
neste gesto diário. Varrer a casa de dentro para fora ou de fora para dentro é
a prova de que o tempo assassinado torna a regressar e, consigo, torna a levar
um pouco de nós. Se prestarmos bem atenção, veremos que o lixo acumulado em
nossas casas diariamente é composto, em grande parte, pelo material morto
expelido por nossa pele. A vassoura, no fundo, nos varre para o refugo do
tempo.
Geralmente
quando varremos nossas casas, somos impelidos inconscientemente, a colocamos
música para acompanhar este ritual diário de limpeza. A música que acompanha nossos
movimentos com a vassoura nos remete a um cortejo fúnebre – varrer ouvindo
música é um réquiem transfigurado em faxina.
O
ceifador da morte tem o formato de uma vassoura.
Há
pessoas que detestam varrer a casa, alegando preguiça, dores nas costas e mil
outras desculpas. No fundo, acredito que elas evitam a prática porque ela traz
à tona à inutilidade do gesto. Ora, varrerei hoje e amanhã estará suxo
novamente, alegam. Pergunto-vos: este não é, por conseguinte, o pensamento da inevitabilidade
do fim transformado no ato de varrer? Parece que evitar à vassoura é evitar a
consciência de que a vida é finita. Jamais desconfiei que a vassoura é um
objeto metafísico.
A
vassoura é um símbolo anti-cristão, não por ela ser o símbolo das bruxas como na
imaginação popular, mas pelo fato de ela ser um objeto circular. O tempo do
Cristianismo é linear, Cristo não voltará a Terra e a vida de todo o cristão almeja
à eternidade no Paraíso. Já o tempo pagão é circular, são as estações do ano, o
tempo de plantar e colher é que rege a vida nas sociedades pagãs. A vassoura é
a prova de que a linearidade do tempo cristão só fez acumular o lixo histórico
representado nas hecatombes humanas e naturais por meio de uma única palavra:
progresso.
A
vassoura também foi utilizada como símbolos de políticos pseudo-reformistas que
enxergavam no objeto a materialização de uma nova era. Erraram em utilizá-la
apenas como objeto fim que iria varrer a corrupção, os privilégios, a falta de
moral etc., a vassoura é um objeto paradoxal: ela não é apenas fim, ela também
é meio porque carrega em sua função à própria inutilidade de sua função. Isto
é, a vassoura nunca será um símbolo acabado de um projeto político porque ela
carrega consigo a aporia de todo projeto político: limpar o que não tem como
limpar, a sujeira inerente a nossas experiências.
Por
fim, não tem como jogar a sujeira para debaixo do tapete pois a vassoura prova
que o que vai para debaixo do tapete é o mesmo material que vai para o refugo
do tempo: sua vida.
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