O livro que eu não roubei

27.8.15 Unknown 0 Comentarios



"rede ao vento

se torce de saudade
sem você dentro"

(Alice Ruiz)

Na época eu trabalhava numa dessas seções burocráticas vinculadas, em última instância, à prefeitura do Recife. Passeava de escola em escola, dando aulas aos alunos sobre arborização, preservação do patrimônio público, meio ambiente, essas coisas. Cada aula, em cada escola, era sempre um desafio: todas aquelas estantes repletas de livros me faziam trabalhar o autocontrole para não me apossar de cada exemplar que me agradava. Passava, no entanto, pelo martírio sem maiores percalços. Não foi o que aconteceu quando me
deparei com "Desorientais", livro de poemas de Alice Ruiz. Há tempos eu vagava pelos sebos à procura não só desse, mas de qualquer outro livro de Alice - tão raros como os livros de seu companheiro, Paulo Leminski. Minhas investidas, dessa forma, eram sempre frustadas, e eu voltava para casa com as mãos vazias, ou segurando aquilo que não estava nos planos. Mas na biblioteca daquela escola, escondido entre versões robustas de "Casa Grande & Senzala" e "Incidente em Antares", estava "Desorientais" lá, reluzente, destacado apesar pequenez física. Falava com meninas e meninos sempre de olho nele, à minha esquerda. Aproveitei o intervalo, me aproximei, saquei-o da estante, cheirei-o, abri-o aleatoriamente, li dois poeminhas, meu deus, que coisa maravilhosa! Os alunos voltaram e eu falava a eles automaticamente - a dúvida entre pegar e não pegar me consumia: tomá-lo para mim e me divertir noites a fio seria muito egoísmo? Se o livro está ali, parado, ou melhor, escanteado, e ninguém o lê (nem o lerá, acreditava eu), posso então dar-lhe bom destino e levá-lo para casa? Não, não posso: o livro foi comprado com dinheiro público para uso coletivo. Mas se não há um único caso de uso, que dirá uso comum! Vou levar, deixá-lo entregue às traças e toda a sorte de bicho ávido de papel, ah, isso sim é desperdiçar o dinheiro público. Mas ainda estaria me apossando de algo que não é meu, etc, etc. A dúvida moral e a falta de oportunidade de furtá-lo sem ser percebido me fizeram renunciar a essa ideia. E, desde então, dia após dia, ano após ano, eu tenho convivido com o fardo desse erro pavoroso. Às vezes, quando me acordo, olho minha exígua prateleira de livros, e vejo que, no meio deles, há uma ausência irremediável. Apoio o queixo nas mãos e lamento: ah, como teríamos sido felizes juntos.

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