Maria Preta
Para meu amigo, Ricardo Santana
Subir, subir mais, subir além
Além de toda treva e toda dor deste mundo
[Leminski &
Wisnik]
A
receita era bem simples: um chumaço de jornal
velho, alguns palitos de fósforo, fogo e pronto. Armava-se o jornal em forma de losango.
As pontas eram fixadas pelos palitos de fósforo e ateava-se fogo nas extremidades. Em seguida, a gritaria acompanhada
de palmas de baixo para cima, era uma só: “Sobe Maria Preta! Sobe Maria Preta!
Sobe Maria Preta!” e o estribrilho ressoava à noite como uma lufada mágica
arrastando o balão Maria Preta para além da afiação elétrica, em um tempo que
as notíciais dos jornais nos eram indiferentes – ainda não sabíamos ler este
mundo.
E o balão Maria Preta subia cada vez mais, para além dos
telhados das casas, para além dos morros, para além de tudo que era pedestre,
ganhando às trevas e sendo um ponto incandescente cada vez menor na imensidão
celeste.
Era a nossa estrela.
Era o afogueado enfeite de nossas vidas que, de tão miserável,
parecia ser tecida pela mesma matéria que compõe à noite – escuridão indeterminada.
E o Maria Preta ia cada vez mais alto, em sua combustão de
celulose, alçado por um vento ascentral ele ascendia para além do cólera, da polícia,
da miningite, da leptospirose, da dengue hemorrágica, das balas, do afogamento nas praias e nos rios e outras desgraças que ceifavam
às vidas dos meus paricieiros, como dizia minha mãe à época.
O Maria Preta foi a metáfora de minha geração. Alguns deles
espatifavam-se antes mesmo de ganharem o céu. Uns não saíam do chão. Outros “morriam”
sobre os telhados da Rua 17. Ninguém até hoje sabe o segredo de um bom balão
Maria Preta. Daqueles que ganham à noite e seguem sozinhos. Meus tios e os
caras mais velhos diziam que eles “morriam” depois do morro. Eu não acreditava.
E, ainda hoje não acredito. Para mim, os Marias Pretas que conseguiam subir o
morro, eram poucos, continuam até hoje subindo, subindo, subindo mesmo à
revelia do vento, de sua frágil estrutura, do comburente e da combustão, do céu
etc., porque levam em seu regaço o berro a plenos pulmões, as palmas intempestivas,
o brilho no sorriso e nos olhos do: “Sobe, Maria Preta! Sobe Maria Preta! Sobe
Maria Preta!”.
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