2014 EM DEZ NARRATIVAS
Elencarei dez livros de ficção que marcaram
o ano de 2014 para mim. Vendo em retrospecto, acredito que este ano foi o que
mais li a literatura de nosso tempo [contemporânea], tanto brasileira quanto
estrangeira. Nos anos anteriores, o grosso de minha leitura ficcional
encontrava-se nos clássicos da literatura universal, em especial: a alemã,
francesa, inglesa, russa e pouca coisa brasileira. Este ano, não foi algo
deliberado de maneira sistemática, mas terminei optando por debruçar-me sobre à
produção ficcional do século XX e XXI, com ênfase, na transição dos séculos e
início do nosso. Optei também por colocar apenas livros de narrativa [romances
e novelas] e não contos, livros de crônicas [destaque para o Óbvio ululante de Nelson Rodrigues e O rei da noite de João Ubaldo Ribeiro
que me tiraram inúmeras gargalhadas] nem os livros da transição entre 2013 e
2014 como 2666 de Roberto Bolaño, por
exemplo, pois começara-o no ano passado, tampouco colocarei livros de poesia.
Quiçá, deixarei estes para uma outra lista. A sequência está em ordem
cronológica, não de leitura mas de lançamento dos livros.
1 – Morte
em Veneza [MANN, Thomas. Ed. Nova Fronteira. Trad. Herbert Caro, 1970]
Há mais de dez anos que não lia um
Thomas Mann, o último fora a quase “intransponível” A montanha mágica, um livro que me marcou profundamente pela
monumentalidade da obra em todos os sentidos: profundidade filosófica das
discussões entre Hans Castorp [protagonista] com o humanista italiano Settembrini
e posteriormente com o jesuíta Naphta; o tempo da narrativa, a construção dos
capítulos etc. Mas, falando de Morte em
Veneza, uma novela que antecede a primeira parte de A montanha mágica, que talvez seja o texto mais autobiográfico do
escritor alemão, onde constatamos a paixão platônica [voltada à beleza] do
escritor bávaro Aschenbach pelo jovem russo Tadzio em um veraneio na pútrida Veneza.
O livro é daqueles textos em que o escritor demonstra total domínio técnico da
composição: sabemos que haverá uma morte em Veneza, mas a narrativa começa em
Munique e a partir daí a morte vai descortinando-se em sequências intermitentes
no caminho de Aschenbach até chegar em Veneza. A decadência e subserviência do
escritor alemão diante da beleza da cidade italiana e aos encantos do jovem
Tadzio levam-no à ruína em um dos finais mais marcantes da literatura que
conheço. Destaque para a prosa empolada mas não entediante do romancista alemão
filho de brasileira [Júlia Mann], é de uma beleza única e já estava esquecido
como as descrições de Mann são impecáveis, dignas de um memorialista de primeiro
time. Aschebach reflete o próprio Mann como falei acima. Há uma mistura de
Apolo [foro público] com Dionísio [foro íntimo] tanto em um quanto em outro.
Mann nutriu também uma paixão homoafetiva por um jovem assim como o seu
personagem acometido pelos açoites de Eros e Dionísio [o sangue latino escorria nas veias tanto de Mann quanto de Aschebach], mas tudo isso era sonegado publicamente. Já
o cólera veneziano é infenso às veleidades do espírito humano e Mann pinta de
maneira magistral como a doença passional do protagonista pelo belo Tadzio
reflete também a beleza de uma cidade que morre por dentro em todo o verão, o
siroco é implacável. A fétida Veneza é a beleza secular de uma cidade presente
no corpo de um menino [Tadzio] e para um espírito susceptível ao belo como o de
Aschebach, vale encarar a morte há muito anunciada.
2 – Recordações
do escrivão Isaías Caminha [BARRETO, Lima. Há inúmeras edições disponíveis
no mercado]
De Lima Barreto só havia lido Triste fim de Policarpo Quaresma e
alguns contos de maneira espaçada. Isaías
Caminha segue a tradição dos romances escritos por escritores
marginalizados na própria periferia do capitalismo, como Dostoievski na Rússia
[epiléptico, viciado em jogo e tido como um escritor vulgar no domínio do seu
próprio idioma]. No caso de Lima, o escritor mulato que morreu em um hospício
tomado pelo vício do álcool, ele levanta no romance em questão, um “quadro”
muito autobiográfico, a trajetória do jovem Isaías [mulato] altamente talentoso
para as coisas do espírito [humanidades] de sua cidade natal, para a capital
federal, o Rio de Janeiro da virada do século XIX para o XX. Uma vez na
capital, Isaías vê a possibilidade de ganhar uma sinecura ser gorada porque o
seu benfeitor no Rio [um deputado que devia favores políticos a um coronel da cidade de Isaías cujo tio foi pedir o emprego para o sobrinho que investira destino na capital] lhe vira às costas. A partir daí o jovem Isaías começa a
perambular na pior pelas ruas da capital totalmente desamparado. Encontra-se
com jovens revolucionários – niilistas, anarquistas, comunistas e outros ismos –
cujas “ideias fora do lugar” destoavam da paisagem tropical da forçada Belle Époque carioca forjada por Pereira Passos
[o Haussmann dos trópicos]. Neste sentido, Isaías Caminha lembra muito o romance do russo Ivan Turgueniev, Pais e filhos onde as ideias de Barazov [niilistas] não encontravam lugar na Rússia do século XIX. Após passar por maus bocados no Rio, Isaías encontra emprego em um jornal recém
instituído, O Globo e trabalha como
contínuo no periódico e vê com o passar do tempo os seus sonhos grandiloquentes
serem gorados por esta instituição poderosa e hipócrita, o jornal. Isaías só terá acensão no jornal quando um dos redatores se mata. A partir daí ele começa a fazer pequenas reportagens in loco e em seguida ganha matérias com mais "fôlego" para desespero e inveja dos demais redatores que não admitiam um ex-contínuo mulato equiparar-se com seus ofícios. Isaías caí nas graças do dono do O Globo, Dr. Loberant que o inicia na vida boemia carioca. Porém, Isaías encontra-se já embotado com tudo o que o Rio lhe proporcionou em seus sonhos paroquias ainda em sua cidade natal, e depois frustrados na capital. Em suma, é uma narrativa muito autobiográfica e vale a leitura tanto para ver o Rio da transição dos séculos quanto para ver de perto do desenvolvimento de uma atividade altamente poderosa no seio da sociedade brasileira, a impressa.
3 – O
ano da morte de Ricardo Reis [SARAMAGO, José. Ed. Companhia das Letras,
1988]
Foi o meu terceiro Saramago, antes
havia lido A jangada de pedra e O conto da Ilha Desconhecida. O referido
romance é uma ficção dentro de outra ficção, o prosador português conseguiu
jogar o heterônimo mais hermético de Fernando Pessoa, Ricardo Reis em uma
aventura de volta a Portugal no ano de 1935 vindo do Brasil [destino atestado pelo próprio Pessoa na pequena biografia que escrevera dos seus heterônimos], ano da morte do poeta lisboeta
autor de Mensagem. A partir daí, Reis
é assombrado pelo autor de Tabacaria nas
ruas de Lisboa. Em meio a tudo isso, uma paixão por uma camareira de hotel,
Lídia – análoga a diva inspiradora do próprio poeta neo-clássico, Reis. Vale destacar
toda a convulsão europeia do período nas vésperas da segunda Guerra Mundial, o
levante nazifascista na Espanha do General Francisco Franco que tem seus conterrâneos
migrando em massa para Portugal. Sem contar as voltas que o próprio Reis dá na
espiral Lisboa e em Portugal quando vai visitar a cidade de Fátima [uma
passagem marcante no romance], com seus milhares de romeiros em busca de milagres,
por ocasião de uma busca desesperada pela católica Lídia cujo irmão é um
marinheiro português insurrecto ao status
quo do seu país. Destaque para a pesquisa histórica que Saramago faz dos períodos e da relação do próprio heterônimo [criatura] Reis com o seu ortônimo [criador]
Fernando Pessoa, uma relação [pasmem!] jocosa. Pessoa conhece todos os recônditos da alma de Reis e cada vez menos ele volta a surgir para conversar com sua criatura, um sinal de que o tempo dos dois está se esgotando na Terra. O curioso é que o criador [Pessoa] morto aparenta mais vida e leveza do que a criatura viva [Reis]. Saramago merece os elogios por amarrar uma metaficção como esta, senti falta de Álvaro de Campos e gostaria de ver mais semi-heterônimos presentes como por exemplo, Bernardo Soares autor do Livro do desassossego acho que estes dois últimos iriam dar uma "cor" diferente à narrativa.
4 – Trapo
[TEZZA, Cristóvão. Ed. Brasiliense, 1988]
Foi o meu primeiro romance que li de
Tezza. O escritor santa-catarinense radicado em Curitiba demonstra um total
domínio da técnica romanesca. A estrutura modular da obra é o seu ponto forte.
O livro narra o suicídio de um jovem poeta curitibano, Paulo [Trapo] que
trabalhavam como publicitário e vivia na pensão de Dona Isolda. Esta senhora
encontra no quarto do seu finado inquilino vários volumes de textos
datilografados e manuscritos e, antes que a polícia chegue junto com pai de
Trapo, Fernando que entrega dinheiro para Isolda não espalhar informações da
vida íntima do filho para não expor a família, ela leva a maçaroca de papel
para o professor de língua portuguesa [viúvo e aposentado] Manuel que mora no
final de sua rua. Os textos de Trapo – em sua maioria cartas dedicadas a
Rosana, seu amor – é uma profusão de vários formatos e estilos literários que
refletiam o espírito de época do
Brasil recém saído da ditadura e do desbunde [vide que Paulo lembra muito um
outro Paulo famoso poeta curitibano, Leminski e toda sua universalidade sui generis]. O ponto forte do livro é a
relação que os dois conhecidos começam a estabelecer a partir do espólio de
Trapo, o professor Manuel e a estalajadeira Dona Isolda. Tezza tece fio por fio
o início da relação do viúvo com Isolda, são páginas sutis em que as camadas de
complexidade vão justapondo-se uma a uma até o final em que vemos a construção
total [à maneira de Manuel] da narrativa e de uma história de amor recém
construída.
5
– O teatro de Sabbath [ROTH, Philip.
Ed Companhia das Letras. Trad. Rubens Figueiredo, 1997]
De todos os livros que li do escritor
norte americano, Philip Roth este em questão está sendo insuperável. Roth com
seu alter-ego em franca decadência, Morris Sabbath conseguiu se superar em toda
sua escrita pornográfica [superou O
complexo de Portnoy neste quesito]; ultrapassou o cinismo [presente especialmente
em Mark Zuckerman em Casei com um
comunista e O fantasma sai de cena];
transpôs o sofrimento [presente em David Kepesh em O animal agonizante]. Em uma palavra, O teatro de Sabbath é para mim o ponto culminante da prosa de P.
Roth. O romance narra as desaventuras do titereiro e ex-professor de
dramaturgia para fantoches de uma pequena cidade do norte dos EUA [Madamascar
Fall’s] demitido por assédio sexual em uma de suas ex-alunas, Morris [Mickey]
Sabbath. Desempregado e vivendo às espessas da esposa professora e ex-alcoólatra
ele mantém uma relação sexual há anos com uma mulher casada, descendente de gregos
e dona de uma pousada, Drenka. O grau de perversão que esta relação tem chega
às raias do absurdo. Um e outro realizam todas as taras possíveis e impossíveis.
Enquanto Mickey, 64 anos, começa a ter a companhia dos mortos em sua vida,
irmão, pai, mãe, amigos e a sua grande amante. Ele recebe um telefonema de Nova
York informando que mais um dos seus amigos morrera. Daí ele parte para a
grande cidade após 30 anos de ausência. Na cidade, fica hospedado na casa do
amigo que lhe telefonou. Neste ínterim, atentem para a composição que Roth
traça de sua geração em meio a cidade em transformação constante. Em seguida, Michey
compra crack e recita no Shakespeare no metrô; pede esmola pela cidade e furta
o amigo em sua casa após dar em cima da esposa dentista. A cena mais marcante
para mim é quando ele vai visitar o túmulo dos pais. E a coragem que só os
grandes romancistas tem quando o personagem Sabbath destila toda a sua
nipofobia por responsabilizarem os japoneses pela morte do irmão mais velho na
guerra – são palavras contundentes.
6 – Presença
de mulher [BELLOW, Saul. Ed. Rocco. Trad. Lia Wyler, 1999]
Segundo livro que leio do escritor e
antropólogo canadense e radicado nos EUA, Saul Below. Descendente de judeus,
assim como Philip Roth, Susan Sontag, Woody Allen e outros tantos judeus que
transformaram a cultura norte-americana do século XX, Bellow talvez seja o
escritor mais promissor de sua geração, seguido por Roth que ainda encontra-se
vivo. O primeiro romance que li de Bellow foi Herzog e tanto este quanto Presença
de mulher [uma pequena novela] remete a uma dimensão muito autobiográfica
do romancista, cujos temas caros são: a análise arguta da sociedade burguesa
especialmente de Chicago, a relação do homem com o seu maior pesadelo, a mulher
moderna e a loucura inerente à vida metropolitana. Na novela em destaque, temos
um pequeno retrato de Harry Trellman um judeu com traços orientais [para uns
chinês e para outros, japonês] que comercializa antiguidades de maneira pouco
ortodoxa [trabalho escuso na Nicarágua é um dos seus negócios arrolados as suas
antiguidades], além de ser um homem muito cultivado e um observador atento dos
assuntos que envolvem Chicago. Ele conhece um multibilionário judeu [Adletsky] que
vive em Chicago com seus mais de oitenta anos, porém lúcido e ávido para despertar
uma recém descoberta, o interesse nas pequenas coisas da vida. Harry entra nas
graças do velho Adletsky que, ao saber do seu interesse por Amy, uma decoradora
de interiores, resolve explorar a fraqueza de Harry por esta mulher que há mais
de 40 anos atormente sua vida através de uma paixão tenra e perene. A partir
daí, os encontros de Harry com Amy são cada vez mais frequente por conta dos
negócios de Adletsky. Merece destaque as passagens que Bellow traça sobre as
particularidades femininas, desde uma prosaica chuveirada a um escândalo
sexual. Nesta seara, o velho Bellow é imbatível – a mulher moderna é uma das
réguas e compassos de sua prosa.
7 – Desonra
[COETZEE, J. M. Ed. Companhia das Letras. Trad. José Rubens Siqueira, 2000]
O primeiro romance que leio do autor
sul africano e sua prosa concisa, linear e agressiva traz um painel da África
do Sul pós-Apartheid. O protagonista é um professor de língua inglesa na
faculdade técnica da cidade do Cabo, David [50 anos e 25 dedicados à docência,
dois casamentos, dois divórcios, três filhos publicados e uma filha já adulta
que mora só em um sítio no interior do país] é acusado de assédio sexual por
uma ex-aluna. Demitido por justa causa e sem nenhum direito empregatício, David
parte para visitar a filha e mora com ela por algum tempo. Sua filha lésbica
toca os negócios de uma pequena propriedade rural. Tem um canil onde toma conta
dos cães dos vizinhos que viajam no verão e tem também uma pequena horta de
orgânicos que vende em uma feira todos os sábados. Após toda a expiação do
processo demicional por assédio e a respectiva “poluição” que uma ação desta
natureza move para quem está sob ela, David busca “repouso” na casa da filha
para terminar o um livro sobre o poeta inglês Byron. Entretanto, o “repouso” é
assombrado pelos espectros étnicos de uma classe social expropriada
historicamente de todos os seus direitos civis, os negros sul-africanos. A
narrativa é forte e escrita à “cortes de estilete”. Apesar dos 50 anos, David é
um homem fora do seu tempo. Uma vida dedicada às letras o deixou fora dos
destinos do mundo e, em especial, do seu próprio país. Sua inapetência em
relação à cultura local é tamanha que ele não entende com uma sociedade para
ele “civilizada” não consegue permanecer erigida sobre os pilares das
instituições legais. Um mundo pós-Apartheid visita David e sua filha, o
resultado é assustador. Coetzee ensina como não ser condescendente com o
leitor, com o seu país, continente, mundo. Em uma palavra, com a própria ficção
tecida por ele.
8 – O
senhor Brecht [TAVARES, Gonçalo. M. Ed. Casa da Palavra, 2004]
Segunda livro do autor Angolano
radicado em Portugal, Gonçalo M. Tavares. O primeiro fora A máquina de Joseph Walser e depois destas duas leituras cheguei a
uma conclusão: Tavares é um dos renovadores da prosa em língua portuguesa. Com
um ritmo de escrita frenético, Tavares já lançou mais de 31 livros desde 2001 e
abocanhou diversos prêmios mundo afora. Em O
senhor Brecht ele mistura vários gêneros literários: fábulas, pequenas
histórias, causos. Com pitadas de Esopo amalgamados com as construções
brechtianas de sua fase de descoberta do Oriente, o escritor angolano traz
pequenas histórias contadas pelo Senhor Brecht em um pequeno auditório. Porém,
diferente de Esopo as “fábulas” não têm uma moral da história tampouco são
redentoras. As pequenas histórias traçam à universalidade do gênero humano que
não se cansa de produzir e reproduzir barbárie como nos fala Walter Benjamin “todo
documento de civilização é um documento de barbárie”. Prestem atenção como o Narrador é uma figura tão escassa neste
nosso mundo capitalista cada vez mais pobre de experiência narrativa ao final
do livro. É uma obra pequena no tamanho; mas gigantesca no que suscita de
debates e reflexões a partir de um gênero quase “morto”, a fábula e de um
escritor que precisa ser revisitado constantemente, Brecht. Neste texto,
Gonçalo deita sua homenagem ao dramaturgo e poeta alemão e a faz de maneira
condizente ao homenageado.
9 – Travessuras
da Menina Má [VARGAS LLOSA, Mário. Ed. Alfaguara. Trad. Ari
Roitman e Paulina Watch, 2006]
Minha primeira incursão ao universo do
escritor peruano foi tranquila. Llosa escreve este romance de uma maneira leve,
direta e sem floreios. Estes ele deixa para a Menina Má [chilenita e outros
epítetos que vão surgindo para ela ao longo da narrativa]. O autor de Guerra ao fim do mundo traz a história
de Ricardo Somocurcio ainda criança em seu bairro, Miraflores incrustado na
capital peruana, Lima. A partir daí, há o desenrolar da paixão feérica de
Ricardo pela Menina Má que muda-se do bairro e toma destino ignorado para “Ricardito”
[coisinha à toa e outras alcunhas que Ricardo vai ganhando no decorrer da
narrativa]. Em seguida, Ricardo já um jovem muda-se para Paris no início dos
anos 1950 [seu grande sonho era morar na capital francesa] e começa a
desenvolver pequenos trabalhos de tradução para o espanhol à serviço da UNESCO.
Em um dos contatos que tem com um conterrâneo, este está responsável por arregimentar
jovens para a causa das guerrilhas que assaltaram a América Latina no início da
segunda metade do século XX. Ricardo foi imbuído por este amigo a dar guarida a
um grupo de jovens aspirantes a guerrilheiros em Paris. Em meio a este grupo
surge a Menina Má. Subsequentemente os dois começam a sair juntos e tem a
primeira relação sexual. A vida de ambos torna-se um imbróglio amoroso e de
má-fé por parte dela que irá durar décadas. Destaque para as descrições de
Llosa sobre o Maio de 1968 em Paris e em Londres, pois Ricardo começa a
trabalhar como tradutor e, por conseguinte, começa a rodar por toda a Europa a
trabalho. Percebe-se um tom autobiográfico neste personagem, pois Llosa escreve
com detalhes “empíricos” as experiências tanto na Londres do desbunde dos
hippies de 1968 quanto na politizada Paris no mesmo ano. Outro ponto forte é a
caracterização e o modus vivendi da
profissão de tradutor que Llosa nos brinda. Percebe-se uma pesquisa acurada
deste ofício na economia interna do romance. Sem contar, a convulsão europeia
dos anos 1960 e também na América Latina, pois o personagem de Ricardo volta a
Lima depois dos anos da ditadura e reencontra o seu país em uma enorme clivagem
política com um destino, como as demais nações do continente, indeterminado.
10 - O
sonâmbulo amador [PASSOS,
José Luiz. Ed. Alfaguara, 2012]
Primeiro romance do sociólogo
pernambucano e professor de literatura brasileira na Universidade da
Califórnia, José Luiz Passos. O romance é um “OVNI” que pairou no cenário
lusófono para mim. Ele narra a vida de um trabalhador de uma indústria têxtil da
zona da mata pernambucana nos anos 1960 acossado por uma profunda confusão psíquica,
Jurandir. Escrito de forma modular com idas e vindas de um personagem perdido
entre o fantasma do filho morto, do casamento em ruínas, da jovem amante, dos
negócios da fábrica, da amizade com o filho do dono da empresa, do acidente que
deixou-lhe marcas até o presente e da descida para a capital e a hospedagem em
um estabelecimento psiquiátrico na Cidade Alta em Olinda. Além disso, há o
espectro muito vivo do Golpe Civil Militar recém instituído no Brasil. Este “OVNI”
reflete e refrata os anseios, as aspirações, o passado, os sonhos de um
personagem em plena indeterminação assim como o futuro de sua saúde psíquica e
os destino do Brasil no momento. O grande mérito de Passos foi o de conduzir
uma narrativa escrita em primeira pessoa cuja voz [vozes] vinha de diversas regiões
e, todas elas, nebulosas. Um personagem cujo único filete de “coerência” e estabilidade
psíquica lhe era dado pelo mundo onírico dos sonhos. Lá da “Cidade Alta”
[podemos trazer uma referência ao sanatório de Berghoff na A montanha mágica], Jurandir tentava enxergar a “capital” em meio
as “brumas” de uma paisagem interior e exterior em plena ebulição onde a
opacidade dá a tônica geral.
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