Reclamações de um morto

22.5.13 Joarez 0 Comentarios



Tendo recebido essa carta via correio eletrônico, de endereço de e-mail que prefiro não tornar público, trago à tona o seu conteúdo:

Em dias de forte chuva, a regra é
por demais conhecida: salve-se quem puder
"Senhor Dr. Ilmo. Governador do Estado de Pernambuco. Primeiro, peço desculpas se me utilizei mal dos pronomes de tratamento. Português nunca foi meu forte.

Meu nome é Ancelmo Dias, com "c" mesmo, sou natural de Recife e tenho 36 anos. Quero dizer, tinha. Tinha até a madrugada do dia 17 de maio deste ano, quando fui acometido por um ataque cardíaco.

Para começo de conversa, admito que já participei de uns tumultos na Avenida Conde da Boa Vista, Grito dos Excluídos, Passeatas dos Sem Terra, Marcha de não sei o quê, sim, já fui. Não nego.

Também não nego que costumava falar mal da classe política brasileira, vez ou outra colocava um braba nas redes sociais, também. Mas só isto.

Nunca fiz mal a uma mosca. Nunca agredi, nem bati em ninguém. Cedia lugar para idosos e gestantes nos coletivos e não deixava o volume do som alto, para evitar incômodos aos vizinhos, em noites dionisíacas.

Amigos e familiares me adoravam. Em vida, claro. Em morte, é outro papo. Mas uma vantagem eu tive: fui poupado de falsas chorumelas no velório.

Voltando: nunca fui petista, peessedebista, peemedebista, lulista, amigo de Sarney ou coisa que o valha.

Cumpria com minhas obrigações de eleitor e com as orientações de Padre Cícero, amém.

Dentro desse contexto, faço uma profunda queixa ao senhor: que história foi essa de não avisar a população sobre a tempestade que se abateu sobre nossa cidade sexta-feira passada?

Imagine o senhor que o cortejo já ia longe, depois do pontilhão do metrô, quando aquele toró desgraçado caiu sobre essa terra.

E aí? Aí que salve-se quem puder, meu caro. E morto não pode se salvar. Se pudesse, nem morto estava.

Meu caixão boiou durante toda a sexta-feira, varando o sábado, na esquina da Rua Sargento Juvêncio com a Rua do Sancho.

Quando voltaram para me buscar, já era claro o dia, meu caixão estava completamente desgastado pela ação da água e meu corpo parecia o de um baiacu.

De modo que enterrado, como manda o figurino, eu só fui no fim do sábado, com quase 36 horas de atraso, algo imperdoável para as leis celestes.

São Pedro não aceitou minhas desculpas, pior, desconfiou que eu estivesse mentindo, e me relegou ao purgatório "até segunda ordem". Veja só: um avisozinho no rádio de manhã cedo e todos estes percalços não me teriam acometido, Senhor Governador.

Espero que o senhor se comunique com as autoridades divinas, se através de médium ou babalorixá pouco importa, e explique toda esta confusão, para que eu possa, padi, Ciço, amém!, gozar da minha vida mansa e eterna no céu, como nos prometeu a filosofia cristã.

Atenciosamente,

Ancelmo"

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